Jornal Correio Braziliense

Cidades

Em pelo menos seis quadras da Asa Norte, venda e consumo do crack ocorrem periodicamente

Cai a noite na 314 Norte. Um movimento estranho à quadra do fim da Asa Norte, na contramão das brincadeiras de crianças e adolescentes e dos passeios de cães, tem início assim que sai de cena a iluminação natural. Jovens vestidos de bermudões, bonés e jaquetas folgadas ganham a região e exploram a comercial e as calçadas ao lado dos blocos residenciais como locais de repasse e consumo de crack. Escondidos ou expostos, protagonizam imagens que viraram parte da paisagem noturna: pontos em brasa característicos da queima da droga que se espalhou pelo Distrito Federal em quatro anos.

O problema na 314 aparece como um dos exemplos de que a Asa Norte concentra os pontos de tráfico e uso das pedras no Plano Piloto. Em dois dias de reportagem, o Correio identificou seis quadras da região onde há a presença do entorpecente tanto na área comercial quanto na residencial. Enquanto não se verificou nenhum movimento na Asa Sul, descobriu-se com facilidade a atuação de traficantes e usuários na 316, 315, 314, 715, 710 e 110 Norte (veja arte). As demais áreas de distribuição e consumo ficam na região central: Rodoviária do Plano Piloto, Setor Comercial Sul e Setor de Diversões Sul (Conic).

Em todos os lugares mapeados na Asa Norte, os responsáveis pelo tráfico e a clientela se confundem. Por causa do poder destrutivo e da dependência desse subproduto da cocaína, muitos consumidores o repassam para manter o vício ; às vezes, cometem pequenos furtos, inclusive dentro de casa. As pedras são baratas, custam de R$ 5 a R$ 10, mas duram pouco tempo. O uso, assim, ocorre em ritmo frenético e faz com que a maioria passe dias sem comer, dormir ou voltar para o lar. Noções de higiene pessoal e de convívio social também logo acabam perdidas.

Os moradores da 314 e da 315 Norte sofrem com o vaivém pelo menos desde janeiro de 2009, quando o Correio publicou reportagem com detalhes do tráfico nas quadras (leia Memória). Quase um ano depois, as reclamações e a insegurança permanecem. Jovens traficantes e viciados ainda usam os pilotis dos blocos como abrigo e passagem. ;O movimento começa às 21h e vai até as 6h, todos os dias. A gente, que trabalha aqui, fica acuado;, afirmou o porteiro de um prédio da 314 Norte. O condomínio retirou os bancos do jardim e os trancou no salão de festas em uma tentativa de dificultar o consumo.

;Cadê o meu filho?;
Os flagrantes feitos pelo Correio expõem a movimentação dos responsáveis pela distribuição do crack na 314 Norte. Os aviõezinhos perambulam pelas duas quadras, mas fecham a maioria das negociações embaixo das marquises das comerciais. Mesmo a noite fria e chuvosa da última terça-feira não impediu o comércio. Pelo menos oito jovens venderam e consumiram as pedras entre 20h30 e 21h40, nem sempre receosos com os olhares da vizinhança. Aproximam-se, compram a droga e acendem os cachimbos, feitos com latinhas de refrigerante e de cerveja, por ali mesmo.

Apesar da ousadia, percebe-se a preocupação dos grupos com a polícia. Enquanto alguns fumam as pedras, olheiros ficam atentos a qualquer barulho de sirene ou aproximação de carros da corporação. Se policiais militares trafegam pelo local, todos correm para se esconder entre os blocos da residencial. Tomam o cuidado de manter nos bolsos pouca quantidade do entorpecente para o caso de serem pegos em uma revista ; pequenas porções não caracterizam o tráfico. Algumas prostitutas da área também se juntam a eles. Para o consumo e a venda.

Moradores da 314 Norte são frequentemente acordados com gritos e correria entre os prédios. Em novembro, pedidos desesperados de socorro ecoaram por volta das 4h. Quem levantou da cama e olhou pela janela presenciou a cena de uma mãe que corria desorientada à procura do filho. A mulher, que aparentava ter uns 45 anos, chorava e pedia ajuda aos porteiros. ;Meu filho, ô meu Deus, cadê o meu filho? Você viu meu filho? Ele me prometeu que não ia usar mais crack;, desabafava. Aos prantos, ela contava para quem quisesse ouvir que o filho acabara de sair de uma clínica de internação.

A primeira vítima do tráfico de crack no Distrito Federal era um morador da 314 Norte. No ano passado, um rapaz de 25 anos morreu brutalmente assassinado. A polícia encontrou o corpo dele 28 dias depois de ser espancado, torturado e morto a tiros em uma área de cerrado na altura da 912 Norte. As investigações apontaram que o jovem perdeu a vida porque roubou dinheiro de um traficante. Ele queria, segundo a polícia, pagar dívidas acumuladas. Os chefes da ;boca; o amarraram em uma árvore, deram socos, pontapés e coronhadas e, por fim, atiraram cinco vezes.

Na 315 Norte, a venda e o uso ocorrem na comercial, principalmente atrás do Bloco C. As porções da droga ficam guardadas em caixas de luz e de registro de água e sobre os toldos das lojas. ;A coisa fica pior depois das 22h, mas funciona todos os dias. Temos uma cliente que mora na quadra e sofre com o filho viciado em crack. Ela conversa com a gente e se abre um pouco. Disse não saber mais o que fazer. Já internou o garoto duas vezes;, contou o funcionário de um dos poucos comércios abertos depois das 18h na 315 Norte.

Memória
Além da área central

O Correio publica série sobre a epidemia do crack no Brasil e no Distrito Federal desde dezembro de 2008. As primeiras reportagens revelaram que a área central de Brasília estava tomada por traficantes e usuários da droga. Regiões como o Setor Comercial Sul e o Setor de Diversões Sul (Conic) apareciam como os principais pontos de passagem e concentração desses grupos no Plano Piloto ; o problema se expandiu e continua até hoje. Em 9 de janeiro do ano passado, o jornal mostrou que o comércio do crack saía da região central e avançava sobre a Asa Norte. A reportagem se concentrou nas quadras 314 e 315 e descreveu o movimento de jovens traficantes e viciados entre as residenciais e comerciais.

Colaborou Diego Amorim.