Jornal Correio Braziliense

Cidades

Pais da estudante Maria Cláudia Del'Isola preparam uma grande homenagem a todos que caminharam com eles nessa dor

Eles passaram 30 meses fora do lugar onde um crime chocou Brasília e o país. Mas estiveram do outro lado da rua, sempre perto, numa casa alugada. Há um ano e meio, decidiram voltar. E transformaram o ambiente. Pintaram paredes com cores mais claras. Mudaram portas. E no piso inferior, perto da piscina, no lugar onde a cena brutal foi consumada e a filha caçula viveu seus últimos e piores momentos (foi assassinada pelo caseiro e pela empregada e enterrada dentro da própria casa), um oratório foi construído. Imagens de Nossa Senhora, anjos, santos, terços, uma Bíblia aberta. E a foto enorme dela ; de Maria Cláudia Del; Isola, a Tatinha, a moça que estudava psicologia e pedagogia, amava as pessoas, sentia prazer em viver e havia acabado de completar 19 anos.

Assim que se entra no oratório, chamado Sorriso de anjo, sente-se uma sensação boa de paz. Do alto e no meio de uma grande estante de madeira, a imagem de Jesus Cristo parece receber quem ali chega. Ao lado, ao fundo, um banner com a fotografia de Maria Cláudia. Ela sorri, com o sorriso encantador que marcou todos que a conheceram. ;Eu perdi a graça em tudo. Ela era a alegria em pessoa;, diz, em lágrimas, a avó materna Fernanda Magalhães Grangeon, 80. E repete, enxugando o choro que escorre há cinco anos: ;A gente se conforma porque tem fé, mas é muito difícil;.

Cinco anos depois da tragédia que marcou a cidade, os pais de Maria Cláudia, os professores Cristina Maria, 51, e Marco Antônio Del;Isola, 54, abriram, com exclusividade, as portas da casa, na QL 6 do Lago Sul, ao Correio Braziliense. Na manhã chuvosa da última quinta-feira, eles falaram de uma dor que dói todos os dias. Dor que sangra. Arrebenta. E estrangula. Contaram como sobreviveram até aqui. Do pior momento: encarar os assassinos da filha, no julgamento. E reveviver detalhes que jamais gostariam de lembrar. De onde buscam forças. E do resgate que o Movimento Maria Cláudia pela Paz foi capaz de promover em suas vidas.

Diante da primeira e inevitável pergunta, aquela que faria compreender o fato de a família ter voltado para a mesma casa, Cristina Maria, com voz pausada e olhos enternecidos, às vezes olhando para o infinito, responde: ;Voltamos principalmente por ela. Precisávamos voltar. Queríamos transformar toda uma dor em alento e luz;. E fala por ela mesma: ;O meu tempo nessa casa é o tempo de Deus;.

Voltaram. E ali, a cada dia 9 de todo mês, é feita uma oração pela vida e pela paz. O movimento, uma entidade de caráter filantrópico, criado em 8 de março de 2005, pela família, parentes e amigos, hoje congrega mais de 500 voluntários cadastrados. Gente de todos lugares de Brasília e do país. Gente de todas as camadas sociais com histórias de perdas ou não, com vontade de ajudar outras pessoas, transformar, falar de dor, superação, vida e fé ; seja ela de que credo for.

Ao longo do ano, o movimento atua em asilos e instituições com crianças e adolescentes carentes. Perto do Natal, atravessa Brasília de ponta a ponta para levar esperança e um pouco de alento a quem nada tem. Marco Antônio engole a dor e se veste de Papai Noel. Disfarça as lágrimas e sorri para crianças que acreditam que aquele velhinho de barba branca e saco cheio de presentes realmente existe. Hoje, o movimento fará a grande festa de Natal do Instituto Nossa Senhora da Piedade, para as crianças e suas famílias atendidas ali.

Foram essas ações, com a fé inabalável, o que salvou Marco Antônio e Cristina Maria. A casa dos Del;Isola ; palco de um cruel assassinato ; se transformou num lugar de oração e esperança. É por isso que os dois sobreviveram. ;Costumo dizer que a dor do parto é enorme. Mas é uma dor que dá a possibilidade de trazer a vida. E ela passa. A dor de perder um filho é definitiva. Nunca será normal um filho ir na frente dos seus pais. Viola a lei de todo ser vivo;, desabafa a mãe. O pai, com serenidade comovente, emenda: ;É uma dor eterna. Nossos dias têm sido de altos e baixos;.

Saudade
Depois que Maria Cláudia morreu, meses seguintes, as duas cadelas da família morreram de câncer. Deprimiram-se e definharam a olhos vistos. Uma delas, a boxer Kiara, a que estava na casa havia dois anos e 10 meses e era mais ligada a Tatinha, parece ter presenciado toda a agonia da estudante. ;Quando eu cheguei em casa e ainda não sabíamos do crime, ela me levava ao fundo do quintal. Acho que tentava me apontar alguma coisa;, lembra Cristina Maria. E continua: ;Depois, soubemos que ele (o assassino) revelou em depoimento que a Kiara tinha atrapalhado durante o crime. Ela tentou defender minha filha;.

O silêncio e a dor invadiram aquela casa. Dilacerados e aconselhados por amigos, decidiram sair do lugar que lutaram para dar o conforto à família. Alugaram uma casa no mesmo conjunto, do outro lado da rua. A presença de Maria Cláudia apenas mudou de endereço. Ela estava nas fotografias, no cheiro, nos objetos pessoais. ;A saudade vem de uma forma muito interna. Vem nos momentos em que acordo de madrugada, revendo fotos e relembrando tudo que vivemos juntas. Aí, vejo que preciso intensificar minhas orações e minha fé;.

Marco Antônio revela: ;Não tem um único dia em que não pense nela. O que nos conforta é acreditar que nossa filha foi acolhida junto ao Pai;. Maria Cristina, novamente olhando para o infinito, diz: ;Maria Cláudia não voltou em vão. Ele vive em plenitude;. A tia-avó, Georgete Magalhães, 90, que mora em Salvador, mas veio a Brasília especialmente para a missa do quinto ano, é a personificação da dor: ;Não entendo como Deus permitiu que ela vivesse 19 anos e morresse dessa forma.; Um silêncio se faz por instantes naquela sala de paredes claras, rodeada de porta-retratos de Maria Claudia sempre sorrindo.

Tudo mudou na vida do casal Del;Isola. Até os ponteiros do relógio. ;O tempo de quem passa por uma dor como essa começa a ser contado diferente. Foi preciso trazer algum benefício dessa dor;, ela reflete. Fernanda Del;Isola, hoje com 26 anos, estava no hospital ; em decorrência de um problema no coração ; quando a irmã caçula foi assassinada. Em cadeira de rodas, foi ao enterro. Agora filha única, iniciando o mestrado em arquitetura, Fernanda fez-se forte. Mostrou aos pais que todos deveriam sê-lo. Ano que vem, vai se casar. ;Ela tá preparando, em mosaico, uma lembrança para todas as madrinhas (do casamento);, conta Cristina Maria, pela primeira vez sorrindo durante a entrevista.

Celebração
A fé ressuscitou os Del;Isola. Permitiu que eles seguissem, mesmo com a dor que dói todos os dias. ;O Movimento Maria Cláudia pela Paz não é da família ou dos parentes da minha filha. É de todas as pessoas que são alimentadas por essa causa;, diz Cristina Maria. Encorajados por ele, na próxima quarta-feira, 9, irão se reunir no Lago Sul, para a missa do quinto ano da morte de Tatinha.

A mãe explica que essa celebração, em especial, tem uma grande motivação: ;É um louvor à vida. Iremos agradecer aos nossos amigos, que nos fortaleceram com a presença, em pensamento e oração. O apoio veio de todas as crenças e esse foi o nosso grande ensinamento;. Comovida, olhando para a foto da filha, Cristina Maria conclama: ;Estou pedindo para que as pessoas não deixem de ir. No final, haverá uma homenagem a todas elas;.

No oratório, o casal se dá as mãos. Olha para o Cristo crucificado. Tudo é silêncio e dor. Dor tatuada nos olhos, no coração e na alma de Cristina Maria e Marco Antônio. Nem todo o tempo do mundo dissipará essa dor. Nem as horas serão capazes de amenizar. Mas, ainda assim, há um alento, que veio com a fé. Em pedaços, cortada por dentro, a vida do pais de Maria Cláudia precisou continuar. Tatinha pede isso a eles, todos os dias, quando sorri nas fotos espalhadas pela casa onde morreu.

SOLIDARIEDADE
Missa do quinto ano de morte de Maria Cláudia Del;Isola ; Seminário Maior Nossa Senhora de Fátima, 19h30, na SMDB QI 17, Área Especial. Site: mariaclaudiapelapaz.org E-mail: mariaclaudiapelapaz@terra.com.br