No carnaval de 1957, na pequena Orleans, em Santa Catarina, uma moça bonita, de 18 anos, filha de italianos, conheceu um paulista 11 anos mais velho, que tinha um jipe e uma estranha profissão aos olhos da garota: era topógrafo. Quarenta dias depois, às vésperas da Páscoa, Neifa Lorena Mattei estava noiva de Aldo Andrade de Menezes. Seis dias adiante, o noivo partia para Brasília e deixava uma promessa: voltaria para se casar e levar a noiva para a nova capital do país.
Nascida nas terras doadas por D. Pedro II ao genro, Conde d;Eu, como dote do casamento com a Princesa Isabel, Orleans guardava um amor imperial em sua história. Desde o noivado de Neifa, a cidade especulava: o topógrafo voltaria ou não para buscar a italianinha? Ele era um forasteiro que havia namorado a moça apenas 40 dias. Aldo passara três anos na região catarinense demarcando áreas de mineração. Por que iria voltar? A noiva esperava pelo noivo, mas ao mesmo tempo aceitava a ideia de ter sido abandonada: ;Se ele não voltar, não me deve nada;, ela dizia, antecipando a desilusão.
Antes de pedir a moça em casamento, o topógrafo avisou: ;Eu trabalho em Brasília;. Ela perguntou: ;O que é Brasília?; O noivo explicou que era um cerradão sem nada. ;O que é um cerradão?; Aldo então explicou que era uma aventura. ;Se você quiser se arriscar; Lá tem pouca gente. Você pode não se adaptar, você nunca saiu daqui;, atentou. Filha e neta de padeiros italianos, ela própria uma padeira, Neifa passara toda a vida trabalhando muito e saindo pouco. Nunca havia ultrapassado os limites da cidade. ;Vou com você pra qualquer lugar;, ela respondeu, e por duas razões fortíssimas: confiava naquele homem mais velho, tímido e determinado e, desde que um grupo de ciganos passara pela cidade, sonhava com a vida em acampamentos.
Nos seis meses seguintes, Neifa recebia do noivo bilhetinhos acompanhados de pacotes de revistas (Manchete, O Cruzeiro, Jornal das Moças) vindos de Brasília. Eram sinais de que ele cumpriria a palavra. Quando a encomenda chegava, toda a cidade corria à casa da noiva para folhear as publicações e, claro, para conferir se o casamento iria sair ou não. Até que um dia Neifa recebeu um telegrama: o noivo chegaria em 15 de novembro de 1957. Chegou quatro dias antes.
Na praia
Casaram-se dois dias depois, em 13 de novembro. No mesmo dia, embarcavam para o Rio de Janeiro para uma rápida lua de mel. A italianinha levaria o primeiro grande susto: ;Nunca havia visto mulher de maiô, menos ainda de biquíni. E eu estava com um vestido sem manga, até no meio das pernas. Aí eu disse: ;Aldo, vamos embora. Não estou gostando disso aqui não, essa mulherada nua é feio demais.; Menos de uma semana mais tarde, os noivos chegavam a Brasília.
Instalaram-se num hotel em Luziânia e começaram então a vida como ela deveria ser. Topógrafo que demarcou os limites do Distrito Federal, o marido saía muito cedo, deixava a mulher ainda dormindo e voltava tarde da noite ou dias depois. Aldo Andrade de Menezes foi um dos mais importantes topógrafos da demarcação dos limites do Distrito Federal, da estrada de ferro Brasília-Pires do Rio, das asas Norte e Sul, de Sobradinho, de Brazlândia.
Num dia, Aldo deixou a mulher dormindo, trancou a porta do quarto por fora e levou a chave. Ela passou a manhã e a tarde trancada, esperando que em algum momento o marido se desse conta do que havia ocorrido. Isso não aconteceu, mas a dona do hotel percebeu a ausência da hóspede, bateu na porta do quarto e descobriu o que acontecera.
Foi aí que Neifa decidiu que iria acompanhar o marido aonde quer que ele fosse. ;Você quer acampar no meio do Cerrado? Tem certeza?;, ele perguntou. A italianinha estava segura do que queria. Na noite seguinte, o casal dormiu sob uma lona, em cama feita no meio do mato com quatro forquilhas, algumas ripas e um colchão comprado às pressas na Cidade Livre. ;Era uma noite linda, bem fresquinha, a chuva batendo na lona, a cama limpinha, o colchão, o lençol, o cobertor novo;, recorda.
Daquele fim de novembro de 1957 até que todo o Distrito Federal fosse demarcado, Neifa acompanhou o marido nos acampamentos montados no sertão de Goiás. Aldo Andrade de Menezes havia feito, em 1953, os primeiros levantamentos topográficos da região e que fizeram parte do minucioso Relatório Belcher, mais tarde utilizados para a fixação do DF e construção de Brasília. Voltara três anos depois, para a demarcação definitiva. Não mais sozinho.
Em barracas
Logo, a italianinha ficou grávida e mesmo assim continuou vivendo em barracas de lona com o marido. Aprendeu a fazer bolo em trempes feitas de molas de carro. Puxava as cinzas, enfiava a panela com a massa, punha a cinza de volta, abafava tudo e meia hora depois surgia um bolo estufado para o café da manhã do marido. ;Os homens almoçavam às seis da manhã e só comiam de novo quando chegavam, por volta das dez da noite.; Havia dias em que Aldo, muito cansado, se recusava a tomar banho. ;Você não vai dormir sujo de jeito nenhum;, a mulher reagia. Então esquentava uma lata d;água, mandava o marido se sentar num banquinho, jogava água nele com uma caneca e a Aldo cabia a tarefa de se esfregar para retirar a terra vermelha do corpo. ;Quando acabava, ele parecia outro. Tomava a sopa e ia dormir pra acordar bem cedinho no dia seguinte.;
Aldo e Neifa conheceram um ;Goiás perdido;, como ela diz. Encontrou goianos em condições miseráveis, abandonados e esquecidos. ;Costumávamos acampar perto de fazendas, pra ter mais proteção e poder comprar galinha, gado. ;Havia muita lepra por aqui. Eles chegavam na barraca, o Aldo ficava preocupado porque a Lucille era um bebê, mas eu dizia: ;Não posso deixar de servir um café a quem vem na minha casa;;. Neifa se lembra de haver conhecido, numa das fazendas, uma família de irmãos que tiveram filhos entre si. ;As crianças eram horríveis, andavam parecendo sapos;. Brasília, diz Neifa, ;fez muito bem a Goiás;.
O Brasil começava, finalmente, a retirar as populações isoladas do Centro-Oeste de seu estado de semibarbárie. Ao mesmo tempo, o país descobria belezas inesquecíveis. ;Era inacreditável. Bastava cavar um metro que a água brotava. Era uma maravilha. O Aldo dizia que a água era a graça de Brasília, pena que a invasão dos condomínios acabou com tudo;, observa. Seis anos depois da morte do marido, Neifa diz que ainda o ama. ;Aqueles dois anos acampados foram os melhores da minha vida;, revela a catarinense com alma de cigana.
Aldo e Neifa tiveram mais dois filhos, Carlos e Frederico. E um neto, Igor. Aldo morreu em 7 de agosto de 2003, aos 76 anos. Pediu que seu corpo fosse cremado e que o pó que dele sobrasse fosse jogado na Praça do Cruzeiro, ;onde tudo começou;, ele dizia. Igor tinha 11 anos quando o avô morreu. Escreveu uma carta onde dizia o quanto gostava de ouvir Aldo contar as histórias da construção de Brasília, o quanto ele era forte e inteligente. E lançou ao ar as cinzas de seu bravo candango.