Jornal Correio Braziliense

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Retratos da vida

A história da professora que, para enfrentar o câncer, redescobriu a vida. Virou fotógrafa e sai pelas ruas com sua maquininha digital atrás de encantamento, muitas vezes depois de mais uma sessão de radioterapia. De peito aberto e literalmente cheio de cicatriz, ela decidiu viver


O câncer pegou Maristela Gonçalo quando ela tirava fotografias da vida na sua máquina digital amadora. Em junho do ano passado, a professora sentiu uma fisgada na mama direita. Não ligou muito. Pensou que era o excesso de trabalho nas duas escolas onde dava aulas de português. A tal fisgada aumentou. E virou um carocinho estranho. Maristela procurou um ginecologista, para uma consulta de rotina. O médico, desconfiado, logo a encaminhou para um oncologista. Uma biópsia, que levou um mês para ficar pronta, não deixou dúvida: o carocinho era câncer.

O Natal da mulher que tirava fotos para dar sentido à sua vida ficou sem cor. Em janeiro, viria a primeira cirurgia, no Hospital de Base. Retiraram o carocinho. Ele pensou que o pior havia passado. Um telefonema no meio de uma tarde, três meses depois, lhe dizia que a professora de 43 anos teria que voltar ao hospital às pressas. Os médicos descobriram que havia mais células anormais no tecido retirado da sua mama. Em abril, a segunda cirurgia. Mais um pedaço extirpado. Ela olhou para suas mamas desiguais e chorou.

Começaram as sessões de quimioterapia. Vieram as náuseas, dores no corpo. Os cabelos da mulher que tirava fotos caíram como caem confetes no carnaval. ;Não pensei que essa doença ainda provocasse preconceito. Tive amigos que se afastaram de mim por causa dela;, diz. Na última sessão de quimioterapia, ela se lembrou da velha máquina digital amadora. Levou-a ao hospital. Registrou o último dia. ;Era como se eu estivesse saindo de uma prisão.; E disse às companheiras carequinhas: ;A gente precisa amar e ser amada;. Despediram-se.

Maristela sabia, entretanto, que ainda não tinha chegado ao fim. Teria que fazer radioterapia, para debelar completamente o mal. Até a semana passada, havia feito a vigésima sexta aplicação. Engordou mais de 20kg. A pele, em função da radiação, está em carne viva. A médica suspendeu o tratamento por alguns dias. ;Vou ficar boa;, acredita, com força inabalável. Reabilitou a máquina digital ; colocou-a no peito, dentro de uma caixinha cor-de-rosa ; e saiu pelas ruas para retratar o que seus olhos veem.

As fotos enchem sua página pessoal na internet. ;Fazer o Orkut foi a forma que achei para me comunicar com as pessoas. Tem amigos, parentes, minhas duas filhas adolescentes, meus alunos, fiz amizade com gente do país todo;, diz. Lotando seu Orkut com imagens reais, ela suportou uma a uma das sessões de quimio e radioterapia. Duas dessas fotos foram parar nas páginas do Correio Braziliense, com exclusividade.

A primeira foi de um resgate do corpo de um sargento que morrera afogado. Na segunda, em 28 de outubro, depois de mais uma sessão de radioterapia, na volta pra casa, em Ceilândia, ela se deparou com um acidente entre um ônibus e um caminhão, no Pistão Sul. Chegou no exato momento em que as oito vítimas eram levadas de helicóptero para o Hospital de Base. Furo de reportagem. Nesse dia, os policiais perguntaram para aquela mulher curiosa se ela era repórter. Maristela se achou o máximo.

Paparazzo
A professora de português confessa que sempre teve vontade de ser repórter ou fotógrafa. ;Às vezes, queria ser invisível, pra captar coisas que ninguém consegue ver. Como esses paparazzi que existem em todos os cantos.; Mas resolveu ser professora. Filha de uma dona de casa baiana e de um taxista mineiro ; ambos vieram para Brasília em 1965 ;, Maristela nasceu na Vila Tenório, no Núcleo Bandeirante, um ano depois da chegada da família.

A infância foi em Ceilândia. E o que lhe impregnou as narinas naquela época foi o cheiro do piche de uma Ceilândia pobre e ainda muito distante do Plano Piloto que começava a ser asfaltada. ;Lembro de andar de bicicleta, com um vestido, e chegar em casa cheia de piche.;

Florisbela Gonçalo, 65, mãe de Maristela, lembra da inteligência precoce da menina. ;Com seis anos, ela escreveu, sem ninguém ensinar, numa tábua de madeirite do barraco: ;Papai noel comeu o sal na panela de minguau;. A gente achou aquilo bonito demais...; Maristela estudou a vida inteirinha em escolas públicas. Aos 19 anos, de porta em porta, vendia perfume e cremes de beleza. No ano seguinte, estudando sozinha, sem cursinho, passou no vestibular de Letras do UniCeub. Cursou a faculdade com crédito educativo. Formou-se, a duras penas. E prestou concurso para a Secretaria de Educação. Há 17 anos, é professora da rede pública. No início do tratamento do câncer, terminava a pós-graduação na Universidade de Brasília. ;Teve gente que chegou a me dizer pra eu desistir do curso;, conta. ;Nem o câncer vai me impedir de continuar.;

A professora não desistiu. Levou o tratamento, a pós e a máquina digital amadora carregada no peito como crachá. Pouco antes da doença, havia refeito sua vida emocional. Separada do pai das duas filhas, que hoje tem 70 anos, juntou-se novamente. Desta vez, com um rapaz 21 anos mais novo. ;Ele não teve preconceito. Me aceitou como sou. Quando adoeci, fazia tudo pra me deixar feliz.;

A mãe de Maristela, sem papas na língua, fuxica: ;Ela é assim: é oito ou 80. Não tá nem aí;. Maristela rebate: ;Solidão é muito ruim;. Preocupada, a mãe conta a travessura da filha de 43 anos: ;Quando ela vai lá pra chácara, só quer comer ovo caipira. Já disse pra ela que faz mal pra quem tem câncer. Nem me escutou. Comeu dois, e com farinha;. Bem-humorada, Maristela devolve: ;Mãe, a médica disse que no meu estado não posso passar raiva nem fome...;

Coelhinha
Há dois anos, a vida de Maristela começou a mudar. O câncer nem de longe parecia existir. De uma colega, ela comprou uma máquina digital bem modesta. Pagou R$ 350. Aprendeu a manusear o equipamento e foi às ruas. Extasiou-se com o que viu. É como se tivesse redescoberto a vida. Clicou tudo que lhe veio à frente. Gente anônima, flores, jardins, família, amigos. Cenas reais. Colocou-os no seu Orkut. Apelidou-se de Estrela do mar alegria.

Dividiu impressões. Emocionou-se. ;Nem o câncer conseguiu me deixar infeliz. Vou lutar e vencer.; Com um companheiro mais jovem, ela diz que sua vida sexual nunca esteve tão boa. ;Outro dia fui a uma loja e comprei uma fantasia de coelhinha. Me vesti e fiz uma surpresa para o meu marido. Quando ele me viu, riu muito. Foi ótimo;, relata, desinibida, contando segredos de alcova.

Na escola, antes da doença, Maristela era a professora ;diferente; do lugar. ;O meu jaleco é colorido, cheio de flores.; Sueli Gonzales, 52, professora de inglês da mesma escola do Recanto das Emas, fala sobre a colega: ;Ela sempre foi prestativa e irreverente. Gosta de ajudar;.

Fim da manhã de uma quarta-feira. Maristela na saída de mais uma sessão de radioterapia, no Hospital de Base. Ambulatório lotado. Gente sofrida, à espera de um milagre, alguma esperança. A estação do metrô até Ceilândia, na estação Galeria, é o próximo itinerário. No peito, além de um colar de prata, a marca por onde recebe radiação. Na cabeça que quer ganhar cabelos, planos: ;Quero ficar livre do tratamento, longe desse hospital, passear, namorar, viver em paz;.

Entre uma foto e outra, ela suspira, encantada com o mundo que insiste em aparecer à sua frente: ;Não tenho vergonha de ser feliz;. Pela lente da maquininha de Maristela, a vida toma forma. A professora recria momentos. Sente cheiros. Retrata apenas o que lhe dá emoção. Conta histórias. Vira repórter, paparazzo. Vibra quando capta o que ninguém viu. Transporta-se. E até esquece que acabou de enfrentar mais uma sessão de radioterapia que deixará marcas no seu corpo. Maristela esqueceu o câncer. Resolveu apenas viver.



"Teve gente que chegou a me dizer pra eu desistir do curso (a pós-graduação). Nem o câncer vai me impedir de continuar."



"Quero ficar livre do tratamento, longe desse hospital, passear, namorar. Não tenho vergonha de ser feliz"
Maristela Gonçalo,professora e cronista da vida real