Cidades

História de um herói e de uma dor

Dono do primeiro hotel da Cidade Livre, José Carlos de Souza tem lembranças caudalosas de sua convivência com Bernardo Sayão. E esclarece como aconteceu a morte do motorista do engenheiro

postado em 21/11/2009 09:23
Já era dia, mas ainda era noite, quando o alto-falante acordou a Cidade Livre com o inacreditável: o engenheiro Bernardo Sayão estava morto. Era 16 de janeiro de 1959. Dono do Hotel Souza, o primeiro da cidade, José Carlos de Souza correu para o bar de Otacílio Gomes dos Santos, locutor e radioamador que transmitia o programa A voz de Brasília. O engenheiro que começou a construir Brasília, que estava abrindo a Transbrasiliana, que havia construído estradas no norte de Goiás nos anos 1940, havia sido abatido por uma árvore amazônica.

Dono do primeiro hotel da Cidade Livre, José Carlos de Souza tem lembranças caudalosas de sua convivência com Bernardo Sayão. E esclarece como aconteceu a morte do motorista do engenheiroO dono do Hotel Souza conhecia o herói desde 1941, quando Sayão chegou a Anápolis (GO) para abrir caminho em direção à Colônia Agrícola Nacional de Goiás, projeto que integrava a Marcha para o Oeste, operação do presidente Getúlio Vargas para ocupar áreas esquecidas do país. Souza foi tratorista do engenheiro nos primeiros 56 quilômetros de estrada. Depois, decidiu voltar para Anápolis e o bandeirante moderno seguiu desbravando o sertão goiano, riscando linhas no Cerrado e deitando cascalho na estrada.

Encontraram-se novamente durante a campanha eleitoral de 1954. Sayão era candidato a vice-governador de Goiás e Souza havia sido nomeado prefeito interino da goiana Rialma. Dois anos depois, quando soube que Juscelino Kubitschek estava disposto a construir a nova capital em Goiás e que o ex-patrão se embrenhara no projeto, o ex-tratorista da Marcha para o Oeste foi para Luziânia tentar encontrá-lo. Filho de uma dona de pensão, ele mesmo proprietário de um hotel em Rialma, José Carlos de Souza pensou de imediato em montar uma hospedaria no canteiro de obras de Brasília.

Souza nem teve tempo de detalhar seu projeto a Bernardo Sayão. O engenheiro se adiantou: ;Foi bom você vir. Você fica comigo esses dias, estou muito cheio de serviço. Pega a O Hotel Souza, o primeiro da Cidade Livre: colchões no corredor e debaixo das mesascaminhonete. No caminho a gente vai conversando;. De Luziânia, passaram nas obras do Catetinho (construído em 10 dias) e de lá desceram até a hoje Candangolândia, onde alguns operários demarcavam uma pista para pouso de aviões de pequeno porte.

Desses dias, Souza guardou imagens das quais jamais se esqueceu: ;O agrimensor já havia balizado a pista da Candangolândia, mas doutor Sayão não estava de acordo. Então, fui guiando a caminhonete e ele, com a porta aberta, ia arrancando as estacas, jogando fora e mandando fazer tudo de novo;. O engenheiro também não aceitou as demarcações do Palácio da Alvorada. E lá, do mesmo modo, ele foi tirando as estacas para que o local fosse novamente demarcado.

Vista do alto
Daqueles primeiros dias do surgimento de Brasília, José Carlos de Souza, 88 anos, jamais se esqueceu do que viu: de dentro um avião de grande porte, na pista de pouso da Fazenda do Gama, saiu um caminhão cheio de madeira. Se a memória do velho goiano não o traiu, a lenda que correu o Brasil anunciando que, para construir a nova capital, Juscelino transportou tijolo de avião, tem sua razão de existir.

Passada a inauguração do Catetinho, em 11 de novembro de 1956, Bernardo Sayão perguntou a Souza: ;Você quer serviço?;. Não era emprego que o goiano queria. ;Quero fazer um hotel, doutor Sayão;, respondeu, ao que o engenheiro retrucou: ;Não tem nenhuma área programada para hotel;. O motorista lembrou que não havia lugar para hospedar os visitantes e os que estavam chegando sem ainda ter onde morar. Sayão disse que iria tratar do assunto com o presidente da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap). Israel Pinheiro não queria nenhuma aglomeração urbana ao redor de Brasília, mas acabou cedendo à ideia de um assentamento provisório de candangos, a Cidade Livre.

Estava, assim, autorizado o surgimento do primeiro hotel de Brasília, o Souza, construção em madeira na Avenida Central na esquina coma Travessa Dom Bosco, bem como o de uma cidade, que se pretendia provisória, ao lado da nova capital. Enquanto buscava material de construção em Anápolis, o ex-tratorista trouxe a família e montou uma barraca de lona de caminhão. Desde esse período, Souza e Tânia já atendiam os forasteiros: ;Sempre tinha gente querendo comer, porque não tinha outro lugar;. Na véspera da Primeira Missa, em 3 de maio de 1957, o hotel estava lotado. Mais que isso: estava superlotado. ;Era colchão no corredor, um atrás do outro. Coloquei colchão até debaixo da cama.;

José Carlos de Souza, à direita, conduzindo Bernardo SayãoForam dois anos de muito trabalho, entre 1957 e 1959. Ao mesmo tempo em que cuidava do hotel, Souza atendia ao velho patrão de gestos impetuosos e capacidade de trabalho descomunal. ;Ele chegava com a caminhonete cheia. Me dava a chave, dizia ;leva ela para a granja; e subia no primeiro caminhão que aparecia e pedia: ;Me leva na Novacap;;. José Carlos de Souza testemunhou o desprendimento do engenheiro: ;Doutor Sayão era um homem que chegava em qualquer casa, entrava pela porta adentro, ia destampando a panela no fogão, tirava um pedaço de frango e ia comendo. Às quatro da manhã, já tinha gente na porta da casa dele, esperando ele acordar pra pedir emprego. Era quando dava pra pegar ele em casa.;

O herói do Brasil que queria ser moderno já havia encantado um presidente da República (Juscelino), um dos mais consagrados escritores norte-americanos (John dos Passos), um intelectual brasileiro de primeira grandeza (Antônio Callado) e milhares de candangos de pele pintada de terra vermelha.

Tristeza
Naquele instante, entre a noite e o dia, em que o alto-falante da Cidade Livre anunciou a morte de Bernardo Sayão, o dono do hotel Souza sentiu ;uma tristeza profunda;. Mas não ficou parado. Depois de correr até o bar do radioamador para confirmar a tragédia, Souza saiu para dar a terrível notícia à mulher de Sayão. Chegou à casa da Rua do Sossego, na hoje Candangolândia, e encontrou a empregada fazendo o café. Pediu para falar com dona Hilda, que apareceu de camisola como quem desconfia, pela voz do visitante, que algo grave havia acontecido. Souza se lembra apenas de a senhora Sayão ter pedido a ele que mandasse lacrar o caixão para que os filhos não vissem o corpo dilacerado do pai.

A tragédia viria acompanhada. Durante toda a noite seguinte, a Cidade Livre velou o corpo do herói de 1,84m e envergadura de estátua grega na capela do Padre Roque. Quando amanheceu e os candangos se preparavam para sepultar Bernardo Sayão, Souza mandou que o motorista Benedito Segundo tirasse o caminhão dos fundos do quintal e o pusesse diante da fachada principal do hotel. Funcionário da Novacap a serviço do engenheiro, Benedito ficava no hotel quando o patrão estava fora. O motorista de Sayão, até então silencioso, entrou no caminhão e, quando deu a partida, tombou sobre o volante. O motor rangeu rudemente. Benedito Segundo estava morto.

Os corpos de Bernardo Sayão e Benedito Segundo inauguraram o Campo da Esperança numa triste manhã de chuva e lama. Souza ajudou a carregar o caixão de Benedito, que seguiu atrás do de Sayão e foi sepultado ao lado do engenheiro. Era 17 de janeiro de 1959. Em agosto, ele vendeu o hotel. Na segunda-feira passada, na varanda de sua casa no Bairro Estrela Dalva, em Luziânia, ele contou essa história.

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