Raimunda Silveria Soares Jesus. O nome é comprido. Orgulho do pai, que quis homenagear a mãe. Mas logo o nome foi trocado. Desde menininha, Raimunda virou Vera. Sabe-se lá por quê. Uma redução de Silveria, talvez. Raimunda cresceu Vera. Tornou-se adulta. Virou mãe Vera. Hoje, é vó Vera. E ela faz um trabalho com gente que é capaz deixar gente envergonhada por não ter tido ainda a capacidade de ajudar gente. Vera é gente, na melhor tradução da palavra. E do melhor que se pode ter de gente.
Toda história tem um começo. A de Vera não poderia ser diferente. Lá em Barra do Corda, interior do Maranhão, nasceu a menina. Era a décima filha do carpinteiro Deodoro e da dona de casa Lizete. O pai da família numerosa queria uma vida melhor para todos. Escutou um fuxico, um zunzun-zum, que, muito longe dali, uma cidade se ergueria. Deodoro, homem de jeito e aparência simples, não teve dúvida. Catou mulher e filhos e partiu rumo ao desconhecido. Sacolejou muito para chegar à terra que nem existia. Mas chegou. Era 1957.
Deodoro montou acampamento no meio das companhias construtoras. E foi exercer seu ofício de carpinteiro. Lizete tratou de cozinhar, para saciar a fome de peão. Vera, menina quase moça, ajudava a mãe. A vida seguia. Em 1959, Vera se casou. Contava apenas 15 anos. Menina de tudo. No ano seguinte, Brasília foi inaugurada. Lizete nunca preparou tanta comida para peão. De tão cansada, nem viu a festa. No ano seguinte, aos 16 anos, Vera pariu o primeiro filho. ;Nessa época, a gente morava num acampamento onde hoje é a sede da Imprensa Nacional. Foi ali que o Jader nasceu. Tive a criança sozinha. Minha avó cortou o cordão umbilical;, ela conta.
A vida insistia em seguir. Tempos depois, Vera arrumou um emprego no Hospital Santa Lúcia. Era atendente de enfermagem. ;É o mesmo que auxiliar hoje;, explica. Ficou ali por alguns anos. Nessa época, morava em Taguatinga com a família, até se mudar para Ceilândia. O marido trabalhava numa fábrica de tijolos.
Um belo dia, uma amiga, que era assistente social do Hospital Regional de Ceilândia, lhe disse que havia uma criança e uma mãe que não tinham para onde ir. Vera não hesitou, Levou-as para casa, mesmo que ali não houvesse espaço. A mãe foi embora. Vera adotou, legalmente, sua primeira filha. Depois, mais 13 chegaram. Um a um. Todos negros. A casa ficou cheia.
Na redondeza, todo mundo admirava a capacidade daquela mulher de se doar. Toda criança que não tinha para onde ir, era deixada ali. ;Tinha dia que acordava e havia uma criança na porta. Chegavam de todas as idades.; A casa, já cheia, não comportava mais tanta gente. Vera resolveu desmanchar a casa original. Construiu ali uma espécie de instituição para abrigar meninos e meninas que não tinham mais com quem contar. ;Acho que foi uma missão de Deus. Não sei nem contar como foi o começo disso tudo;, ela diz, 40 anos depois do tal começo disso tudo.
De Ceilândia, em 1990, Vera se mudou para Águas Lindas (GO), a 50km do Plano Piloto. ;Invadi mesmo esse terreno. Se não tivesse feito isso, jamais teria conseguido um lugar;, explica. O terreno, tempos depois, foi repassado à prefeitura, que cedeu a Vera para que ela erguesse seu projeto. Foi ali que nasceu sua instituição. Na Casa de Moisés, hoje, vivem 71 crianças, das mais diferentes idades. ;De seis meses a 17 anos de vida. Chegam aqui encaminhados pela Vara da Infância de Goiás. Se todas as possibilidades de retorno à família acabam, elas são colocadas à adoção;, detalha.
Abandono
São crianças com as mais devastadoras e inacreditáveis histórias de vida. Traumas se somam. Às vezes, chegam três, quatro, cinco irmãos de uma só vez. São vítimas de abandono, abuso sexual, negligência e maus-tratos. E ali, naquele lugar, com piso de cimento vermelho, instalações bem simplórias e pátio de terra batida, elas encontraram um lar de verdade. Talvez o primeiro que tiveram na vida. Vera, a incansável, virou vó Vera em tempo integral.
Na manhã chuvosa de ontem, o Correio esteve na Casa de Moisés, em Águas Lindas. O lugar é longe, o asfalto acaba e se entra num pedaço de terra batida. Nada, porém, que impeça de chegar. Ao entrar, Vera está às voltas com a rotina da casa. Algumas crianças estão nas escolas municipais da cidade. A mulher que fundou tudo aquilo tem hoje 67 anos, andar calmo, cabelos grisalhos cobertos com um lenço preto, calça sandália rasteira, veste vestido comprido e, no pescoço, usa três medalhas ; de Cristo, do Espírito Santo e de Maria, de quem é devota.
Vera conta que tudo ali, todo o seu trabalho, só existe graças a ação de voluntários. ;Todos de Brasília. Eles é que mantêm a casa. Tem um dentista que montou um gabinete odontológico e todo sábado vem tratar dos dentes das crianças. Temos aula de reforço com professor, sala de informática;, ela conta, com alegria incontida. Essas mesmas pessoas, que ajudam sem dizer o nome, promovem passeios a Brasília e um mundo mais lúdico e menos triste para as crianças da vó Vera.
Algumas conseguiram ser adotadas. Outras, pela idade avançada, não têm a mesma sorte. ;Se passar dos cinco anos, for negra ou tiver alguma deficiência, é bem mais difícil;, diz Vera, com experiência de quem entende do assunto. Mas nada a desanima. Pelo contrário. Suas crianças são felizes ali. Isso se comprova quando o micro-ônibus que as busca na escola chega àquele pátio de terra batida.
Correm para os braços de vó Vera. Abraçam-na. Comovida, ela admite: ;O que me anima é a vontade que eles têm de ter um futuro. E diz, olhando com ternura para suas crianças: ;São os meus anjos. Quando eu partir, não gostaria de ver minha casa fechada;. Hora do almoço. Um verdadeiro banquete ; arroz, feijão preto, salada de tomate e frango. Vera chama as crianças para um Pai-nosso. Elas rezam, sentadas num grande banco de madeira em volta da mesa. Depois, alimentam-se, com gosto. É mais que o alimento do corpo. É alma que, em primeira instância, se empanturra de felicidade. ;Isso é a prova da presença de Deus;, ela constata, de longe, olhando para suas crianças. A vida inteirinha de Vera só teve um sentido: servir. E só assim ela deu sentido à sua peleja.
1 - SOLIDARIEDADE
Quer ajudar as crianças da Casa de Moisés? Ligue para (61) ; 3618-5322. Banco do Brasil Agência: 4590-X Conta corrente: 11.524-X. A instituição está sempre aberta para visitas, todos os dias