Jornal Correio Braziliense

Cidades

Descaso em todos os lados

A uma semana do Dia de Finados, usuários reclamam da má gestão dos cemitérios, como túmulo depredados, mato alto e conservação ruim

A força-tarefa que há um ano mobilizou deputados distritais, promotores de Justiça, delegados de polícia e o governo para desmontar o mercado da morte no Distrito Federal produziu até agora poucos resultados práticos em relação aos serviços prestados nos cemitérios da capital. Muitos dos problemas detectados durante as investigações sobre esse setor persistem. O Correio percorreu na última sexta-feira as unidades sob a administração da concessionária Campo da Esperança Serviços Ltda. e constatou em quatro dos seis cemitérios: reclamações que deram origem às primeiras suspeitas sobre a má gestão continuam atuais. Depredação dos túmulos, pavimentação insuficiente, falta de sinalização e péssima conservação são apenas alguns dos itens que tornam as deficiências evidentes. Apesar da cobrança de uma taxa anual das famílias e da ação de jardineiros pagos por particulares, muitos setores carecem de manutenção. %u201CPor mais que a gente pague para a empresa cuidar, nunca vejo isso ocorrer. Então resolvi eu mesmo fazer%u201D, disse o professor Gutemberg Pontes Silva, 26 anos. Com as próprias mãos, na última sexta-feira, ele pintou o túmulo do sogro de branco e fixou a cruz na tampa da sepultura no cemitério de Taguatinga. %u201CAntes o túmulo estava quebrado, com marcas de pegadas. Tive que fazer alguns consertos, porque a família virá no feriado de Finados%u201D, conta. Em alguns casos, lápides estão quebradas, cruzes foram arrancadas e existem sepulturas com buracos profundos feitos por tatus e ignorados pela administração. Não há calçamento suficiente. Dos percursos pavimentados, muitos trechos estão incompletos ou cobertos por grama. Mas boa parte dos caminhos, especialmente nos fundos dos cemitérios, é mesmo de terra, o que dificulta o acesso às campas %u2014 especialmente para idosos e pessoas com algum tipo limitação para andar. Na época das chuvas, a situação é ainda pior por conta da lama. Em alguns casos, como em Planaltina (Quadra 66, setor A), o escoamento das águas é improvisado, o que provoca o acúmulo de sujeira e torna a passagem perigosa. Restos de ossos Às vezes, é preciso o olhar treinado de quem conhece cada palmo desses endereços para perceber supostos abusos na rotina de enterros. José Raimundo da Silva trabalha há 11 anos como coveiro no Campo da Esperança, na 916 Sul. Ele é testemunha dos procedimentos adotados pela concessionária para resolver a falta de terreno no cemitério. %u201CO espaço foi ficando pequeno, aí o pessoal da empresa começou a abrir a área com as máquinas e enterrar os corpos no meio de duas quadras, deixando um tantinho de nada entre uma cova e outra. Algumas vezes, eles achavam restos de ossos%u201D, revela. A disposição das covas no cemitério reproduz, mesmo depois da morte, uma diferença social que separa ricos de pobres. Enquanto os corpos de indigentes e de pessoas pobres estão enterrados em áreas sem nenhuma ou com pouca manutenção, o cemitério dispensa uma atenção maior para as quadras onde os mortos têm nome e sobrenome. A área à qual o coveiro José Raimundo se refere (Setor C do cemitério) é destinada ao enterro social de pessoas humildes, em alguns casos, sem identidade. %u201CÉ muito triste ver que o pobre passa por humilhação até depois de morrer. Tudo isso aqui que a gente tá pisando tem corpo enterrado%u201D, avisou o coveiro, ao mostrar o local das campas sem demarcação. Assim como ocorre no Plano Piloto, a conservação no cemitério do Gama é uma na entrada e outra nas quadras mais afastadas. %u201CAqui está tudo muito ruim. É só olhar em volta, veja essa terra, o mato que cresce e ninguém cuida, os túmulos se acabando. De bom, só o jardins que a gente cuida%u201D, diz Júlia Batista de Oliveira, 63 anos, que trabalha no local há 40 anos. Ela mora numa casa que faz fronteira com o cemitério e tem acesso aos túmulos por uma fenda aberta no portão. O povo fala O que você acha da conservação e manutenção dos cemitérios da capital? Márcia de Souza, 31 anos, promotora de vendas, mora em Ceilândia %u201CAcho muito ruim. É tudo muito bagunçado, mas como está chegando o feriado de Finados, eles dão um jeito para dar uma melhorada. Meu pai está enterrado em Taguatinga e se eu não vier cuidar da área onde ele está, fica tudo abandonado. Os responsáveis pelo cemitério tinham que dar mais atenção à limpeza do local%u201D Francisco Irineu da Silva, 63 anos, catador de material reciclável, mora em Ceilândia %u201CA situação está feia. Tem muita sujeira espalhada, mas é difícil encontrar funcionários limpando. Eles não conservam direito porque tem vários túmulos quebrados, precisando de retoques. Está tudo mal organizado e não é fácil encontrar os endereços. Tanto no cemitério de Taguatinga quanto do Plano Piloto, o descaso é grande%u201D José Alcides Pereira, 49 anos, comerciário, mora em Planaltina %u201CNo geral, a administração dos cemitérios não está boa. Para você ter um túmulo cuidado e limpinho, você precisa pagar alguém por fora para fazer o serviço. Mas é obrigação da administração de, pelo menos, manter a área ao redor conservada. Isso é fazer o básico. Acredito que há descaso porque a empresa que opera não está trabalhando bem%u201D Amado Viana, 42 anos, funcionário público, mora no Gama %u201CNão sei sobre os outros cemitérios, mas, pelo menos no Gama, a conservação não é ideal. A gente precisa de andar sobre terra, tem vários túmulos quebrados e alguns até abertos, o que dá um aspecto ruim. O mínimo que se pode fazer pela família que perde uma pessoa querida é manter o lugar onde ela está enterrada com uma apresentação decente%u201D Memória Investigação em 2008 A crise no setor da morte do Distrito Federal assombrou os moradores da capital no ano passado. Imagens de cemitérios depredados, histórias de famílias enganadas por donos de funerárias e flagrantes do comércio ilegal de caixões reutilizados chocaram a população candanga. A sucessão de escândalos começou ainda em 2007, quando uma família de Taguatinga e outra do Gama denunciaram à Câmara Legislativa a remoção sem consentimento dos restos mortais de seus parentes. Mas, só em março de 2008, as suspeitas de irregularidades começaram a ser investigadas formalmente, com a criação da CPI dos Cemitérios pelos deputados distritais. Em 19 de março, o Correio publicou reportagem na qual revelou que o contrato de concessão assinado entre o governo e a Campo da Esperança Serviços Ltda. %u2014 que administra os seis cemitérios do DF %u2014 é questionado na Justiça. Segundo a ação judicial, o capital social do consórcio vencedor da licitação era 14 vezes menor que o especificado no edital. Na época, o valor chegou a ser corrigido por determinação do juiz, mas o convênio já estava em vigor. Além da dúvida sobre a legalidade do processo de escolha da Campo da Esperança, pairava a suspeita de que a empresa cobrava preços acima do mercado para os serviços de enterros. Os questionamentos levaram os distritais a visitar os cemitérios do DF. A investigação dos distritais resultou em um relatório que pediu o indiciamento de várias pessoas. O material foi enviado ao governo e Ministério Público. O próprio Executivo produziu um documento com as conclusão tiradas sobre as denúncias da máfia da morte. Na última semana, o Tribunal de Contas do DF apresentou um relatório técnico em que aponta uma série de irregularidades nos cemitérios. Apesar do esforço de investigação, poucas mudanças foram sentidas pelos usuários. O governo promete para os próximos dias, a apresentação de uma lei que vai disciplinar a rotina dos enterros.