Jornal Correio Braziliense

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Recanto das Emas celebra a chegada da sua primeira Academia de Letras e Artes

Aos 13 anos, ele escreveu pela primeira vez o nome. Ainda lia mal, mas já conhecia o suficiente do alfabeto para não ter mais vergonha de si mesmo e acreditar que podia fazer parte de alguma coisa. Aos 62, num dia seco de agosto, inaugurou um espaço onde se pensa e se produz literatura e arte. E o homem anda rindo à toa. Virou menino. Nunca esteve tão feliz. Com a voz mansa, com o jeito mineirinho que tem, ele confessou: ;Estaria morto se não tivesse estudado. Acho que fui longe demais;. Este homem idealizou e fundou a primeira Academia de Letras, Artes e Ciências do Recanto das Emas. E sua história é absolutamente comovente.

Um dia, o pai e a mãe, lavradores e analfabetos, resolveram deixar os confins de São Roque de Minas, em Minas Gerais, para se aventurar na cidade que um dia ouviram falar que existiria. Era setembro de 1958. A família ; pai, mãe e três filhos ; partiu. O menino, que não conhecia as letras, tinha 11 anos. A cidade que viraria a nova capital do país era apenas terra vermelha e escuridão. Pararam no Núcleo Bandeirantes, como todos os aventureiros que aqui desembarcaram em busca do mesmo sonho. O lavrador analfabeto virou operário da construção civil. E se danou a trabalhar para construir a cidade que seria inaugurada. Ajudou a construir as casas da W3 Sul.

Em 1959, o operário analfabeto ganhou um lote em Taguatinga. Ali, vislumbrou a possibilidade de construir a própria casa. O menino assistia a tudo. Viu a inauguração de Brasília. E começou a sonhar com uma vida melhor. Pediu ao pai para ir à escola. Em 1961, quase perto de completar 13 anos, entra, pela primeira vez, num colégio. ;Fui para o Grupo Escolar 1, para fazer o primeiro ano primário; lembra. Mas as dificuldades iniciais foram tamanhas. ;Não conseguia aprender nada.; No final do ano, o menino negro, filho de um ex-lavrador que tinha virado pedreiro, foi reprovado.

Naquela época, em Taguatinga, a Escola Nossa Senhora do Perpétuo Socorro ; mais conhecida como Colégio dos Padres ; era referência na cidade que engatinhava. Um dia, vendo a tristeza do menino em decorrência da reprovação, Isabel Felipe, que sabia ler e era comadre da mãe dele, o aconselhou: ;Se você aprender a ler, o padre vai lhe receber na escola;. O menino acreditou que podia mudar o seu destino. Pegou os livros que podia pegar. Leu errado. Leu de novo. Leu mais uma vez. ;Aprendi a ler sozinho;, ele diz.

Para acreditar que de fato tinha aprendido, leu para a comadre da mãe ouvir. Ela constatou, emocionada: ;Você está preparado pra enfrentar a vida;. E o menino acreditou. Foi aceito na Escola dos Padres. Fez o primário e o começo a o primeira série do ginásio. Mas teve que interromper. Aos 17 anos, foi convocado para a Aeronáutica. Ficou dali de 1965 a 1973. Saiu dali cabo, com especialização em mecânica de aeronaves. ;Era um bom mecânico;, orgulha-se.

Derrame
Com apenas a primeira série do ginásio (5; série) feita e cabo da aeronáutica, o agora rapaz virou vendedor de loja, vigia, operador de telex e monitor da extinta Funabem (hoje Caje). Entre um emprego e outro, terminou o ginásio e o científico (ensino médio). Em 1980, tentou vestibular para Direito, numa faculdade particular. Cursou seis meses.

Quando achava que finalmente estava se ajeitando na vida, um derrame avassalador o pegou no meio do caminho. O rapaz tinha 33 anos. Mas, milagrosamente, escapou. Saiu com algumas sequelas e desistiu de continuar. ;Pensei: ;Vou morrer mesmo, pra que continuar estudando?; Perdi a esperança;. Um dia, numa consulta com um médico, o homem de jaleco branco, ao ouvir o desânimo do paciente, provocou: ;E se você não morrer?;

O rapaz que morava em Taguatinga voltou a estudar. Tempos depois, fez novo vestibular. Passou para geografia. Orgulha-se de ter sido o décimo sexto classificado. Formou-se. E prestou concurso para a então Fundação Educacional. Virou professor. Deu aulas em várias escolas do Gama, de Brazlândia e, em 1995, chegou ao Recanto das Emas.

Escreveu um livro que falava de preconceito e racismo. Diz ter sentido tudo isso em uma escola pública da cidade onde deu aula. ;Fui convidado para ser assistente de direção, mas o preconceito impediu que eu tomasse posse;, diz, entristecido. O nome do livro, publicado em 2006? Um recanto brasileiro ; a face oculta do racismo. ;Senti na pele o quanto ser negro ainda é difícil;, avalia.

No Centro de Ensino Médio da 804 do Recanto das Emas, onde agora dá aulas e mora desde 2003, anos (;sou recantense de carteitinha;, diz, orgulhoso), ele teve a chance de realizar seu grande sonho. Inaugurou, com ajuda da direção da escola, dos colegas professores e de escritores de outros cantos do DF e até do Entorno, um lugar onde se pudesse produzir saber, descobrir talentos, incentivar, aglutinar, somar. Nasceu a primeira Academia de Letras e Artes do Recanto das Emas. Tem regimento e estatuto, protocolado em cartório.

Revolução

Pela absoluta falta de espaço, o lugar foi inaugurado na própria escola onde dá aulas de geografia. A direção apoiou a ideia. Na sala de recursos, a academia foi montada. Os alunos gostaram da novidade. Alguns se descobriram com talento especial para produzir textos. Erisvaldo Souza, 37, professor de sociologia, comemora: ;Os alunos são observados na sala e os que desejam escrever textos são convidados a participar. Trazer uma academia para parte de uma sociedade excluída, onde os alunos, geralmente, tem baixa autoestima, é uma proposta interessante, nova visão do conhecimento;. O diretor Ivanildo Júnior, 37, elogia: ;Precisamos acabar com o modelo quadro e giz;.

Maria Regicleine de Oliveira, 16, aluna do primeiro ano do ensino médio, é uma delas, Empolgada, ela reconhece: ;É a oportunidade para quem procura ajuda. Escrevo desde a 5; série, mas só agora tive coragem de mostrar para as pessoas;. Antes, Maria Regicleine só mostrava os escritos de amor para uma amiga. Thawana Castro, 16, também do primeiro ano, embarcou no trem das boas descobertas. ;Gosto de ler e escrever sobre terror e histórias de policia. Acho que aqui vou ter chance de desenvolver isso.;

O homem que idealizou tudo isso quer mais. Sempre mais. Embevecido, profetiza: ;Nosso plano é ter um espaço próprio. Queremos todos aqui dentro, a escola e a comunidade. Queremos artes, música, literatura. Vai chegar um momento em que a sala de recursos ficará pequena para tanta gente;.

Ele, que aprendeu a escrever o nome aos 13 anos, hoje faz pós-graduação em psicopedagogia. Isabel Felipe, a comadre da mãe que o incentivou (lembram-se dela, no começo desta reportagem?), está vivinha da silva e continua acreditando naquele menino que queria descobrir o mundo e virar doutor. Completou felizes 82 anos. Danada que é, ela também ainda ralha com ele. ;Ela continua minha conselheira e amiga. Meus pais morreram e não tiveram tempo de me ver professor;, lamenta.

Num mural na sala de recursos, há um cartaz onde se lê: ;O ensino que realmente causa impacto em quem o recebe não é o que passa de uma mente para outra, mas de um coração para outro;. Com os olhos embriagados de contentamento, o causador de tamanha revolução naquela escola pintada de amarelo vê o sonho tomar forma. Sonho que não sonhou sozinho.

O nome dele, do homem negro que lutou contra toda sorte de preconceito, venceu a si mesmo e provou que realizar-se é uma questão de determinação? Bom, o nome dele é Roque Manoel dos Santos. Roque? Sim, para homenagear a cidade onde nasceu. Tem 62 anos, casado pela segunda vez, quatro filhos, sete netos e quatro bisnetos. Este homem fundou um lugar onde sonhos serão possíveis. E palavras podem virar um novo começo, perspectiva, renascimento. Este homem acabou de salvar a vida dele e, sem saber exatamente, a vida de tantos.

 

Boa causa
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--> A Academia de Letras do Recanto das Emas está aberta a toda a comunidade. Contato com o professor Roque: 9683-9998 e 3901-8230 (escola)