Jornal Correio Braziliense

Cidades

Vanguarda feminina de Colégio Militar de Brasília se reencontra

Vinte anos depois, a primeira geração de mulheres a ingressar no CMB relembra o impacto e a curiosidade causados pela leva de calouras naquele reduto exclusivamente masculino

Elas marcharam e cantaram o Hino Nacional como se nunca tivessem deixado de fazê-lo. Parece ter sido ontem o dia em que as alunas pioneiras do Colégio Militar de Brasília (CMB) aprenderam os costumes da instituição. Integrantes da primeira turma de meninas do colégio comemoraram os 20 anos do rompimento de uma antiga tradição: em 1989, elas quebraram a hegemonia masculina e inseriram as saias no uniforme escolar. Na manhã de sexta-feira, reencontraram-se no pátio do colégio e participaram da formatura dos atuais alunos.

Em fevereiro de 1989, 50 meninas ingressaram na 5; série do ensino fundamental do CMB. A proporção era de uma garota para cada 40 rapazes. A novidade mexeu com alunos e professores, que não estavam acostumados à presença feminina do lado de dentro dos portões. ;A gente gostava de cantar, fazer as brincadeiras da nossa época, como rodinha, coisa de menina. Eles ficavam olhando, achavam estranho, riam;, comentou a advogada Beatriz Veríssimo Sena, 31 anos.

Os novatos da 5; série sempre passavam pelo trote dos mais velhos. Quando as meninas chegaram, os veteranos não sabiam o que fazer. ;Ficou aquela situação inusitada: será que pode fazer trote com as meninas? Algumas meninas levaram trote, outras não;, disse Beatriz. A advogada não escapou da gozação. Certo dia, estava com uma amiga e se viu cercada por rapazes. Eles usavam as boinas para dar um susto nos novatos pelas costas.

Em um colégio só de meninos, espera-se que as brincadeiras sejam pesadas. Com a chegada das moças, os rapazes tentaram mudar a postura, mas algumas piadas permaneceram. ;No meio da aula, os meninos do andar de cima desciam um pôster de mulher pelada para o andar de baixo. Eles contavam que falavam palavrão, mas foram proibidos depois que nós entramos;, disse a professora de educação física Amanda Cabral, 31 anos.

A decisão de aceitar meninas no colégio foi amadurecida durante um ano. A direção da escola precisou fazer mudanças estruturais para receber as alunas. Os banheiros tiveram de ser adaptados ; não havia toaletes destinados às estudantes. No início os vestiários eram iguais aos dos meninos, sem divisórias para trocar de roupa ou tomar banho após a aula de educação física. ;Era só um cano na parede com água gelada, e sem divisória. Lembro que a gente se olhava e pensava: ;E agora, vamos ter que tirar a roupa para tomar banho?;;, recordou Amanda. Com o tempo, elas ganharam privacidade com divisórias no banheiro.

Seleção concorrida
Na época, os professores participaram de seminários sobre o acompanhamento pedagógico das turmas mistas. A direção convocou duas policiais militares para atuarem como monitoras das alunas. As 50 meninas tiveram duas semanas de adaptação antes do início das aulas, assim como os meninos novatos. Elas passaram pelos mesmos ensaios que os rapazes e aprenderam a entrar em forma, desfilar e marchar.

Todas enfrentaram a concorrida seleção para entrar na escola. Os primeiros dias de aula não foram fáceis. ;Era muito estranho, eu ficava sem graça. Em todo lugar, nós éramos minoria. Mas, como éramos obrigadas a conviver com os meninos, tiramos de letra;, relatou a dentista Luciana da Fonseca Rocha, 31. Ela foi a única menina da antiga escola a fazer o concurso do CMB. Nos anos 1980, o colégio já tinha fama de ser exigente e incentivar os esportes. ;Meu pai queria que eu entrasse porque era uma escola com muita disciplina, que dava atenção à educação física. Lá você aprende valores e a questão da hierarquia;, comentou.

Parte das primeiras alunas ainda mora em Brasília e se encontra vez ou outra. Elas tentam manter o contato e sempre ficam sabendo quando uma antiga colega se casa ou tem filhos. Ao assistir ao desfile, elas relembraram momentos marcantes da vida escolar e se divertiram. Pela primeira vez, puderam entrar no colégio infringindo todas as regras de vestuário: saia curta, cabelo solto e batom vermelho. ;Eles vigiavam nosso uniforme. Se a gente crescia e a saia encurtava, tinha que descer a barra ou comprar outra;, comentou a médica oftalmologista Márcia Godoy, 32 anos.

As pioneiras aguentaram reclamações de quem tinha opinião contrária à presença delas no CMB. ;Muitos tinham preconceito, mas era velado. Alguns falavam que aquilo não era para a gente, diziam que a gente não ia dar conta, que era uma loucura;, lembrou Amanda. A ala feminina logo mostrou que tinha todo o direito de estar ali. O coronel aluno(1) escolhido naquele ano era mulher. De lá para cá, só dois rapazes alcançaram o posto ;as outras 18 eram mulheres.

As meninas ainda não conquistaram maioria na escola ; dos 3,4 mil alunos, 52% são homens e 48% são mulheres. No entanto, elas se destacam pelo comportamento e boas notas. ;As meninas são mais atentas, elas fixam um objetivo e conseguem interagir mais rápido com as matérias do colégio;, ressaltou o comandante do CMB, coronel Wagner Gonçalves. Segundo ele, elas são mais cuidadosas com o uniforme e prestam muita atenção em sala de aula. A major aluna Isadora Cavalcante, 16 anos, convive com meninas o dia todo e não imagina como deveria ser o CMB há 20 anos. ;As alunas devem ter sentido muito preconceito por parte dos meninos naquela época. Hoje muitas mulheres conseguem alcançar o que querem;, concluiu.

1- Título honroso
A cada ano, o colégio elege o melhor estudante. Ele ganha o título de coronel aluno e passa a comandar o batalhão escolar. Notas e comportamento são levados em conta na escolha.