Jornal Correio Braziliense

Cidades

Por mês, 25% dos autos de infração de trânsito são cancelados

O motociclista José Carlos Siqueira Pina levou multa por deixar de usar o cinto de segurança. Agentes flagraram o Cadillac ano 1954 que não circula pelas ruas há pelo menos 20 anos estacionado em local proibido. Um deficiente que tem o adesivo que lhe dá direito a usar vagas especiais acabou punido três vezes porque parou no local reservado para pessoas com dificuldade de locomoção. Apesar de parecerem absurdas, as infrações são reais. Trata-se de erros cometidos por agentes de trânsito que, muitas vezes, se transformam em uma grande dor de cabeça para os motoristas.

Os equívocos ocorrem quando a irregularidade é flagrada pelos agentes do Departamento de Trânsito do DF (Detran) ou por policiais militares, pois os equipamentos eletrônicos, que emitem a maior parte das multas no DF, são precisos. O Detran reconhece as falhas, mas alega que é impossível estabelecer um número exato de multas erradas enviadas para os motoristas. O que se sabe é que, todos os meses, cerca de 25% das penalidades acabam canceladas porque os autos de infrações são considerados inconsistentes.

As primeiras pessoas a perceberem o erro são as que integram o Núcleo de Controle de Infrações do Detran. Esses funcionários digitalizam os documentos preenchidos pelos fiscais na rua. Quando têm algum tipo de dúvida ; como a letra ou o número das placas que não ficam bem identificados no auto ;, nem processam a penalidade. Em julho de 2009, por exemplo, 108 das 21.536 multas processadas pelo Detran foram descartadas no Núcleo e nem chegaram a ser enviadas para os infratores ; o que corresponde a 0,5% do total.

Mas nem sempre a equipe consegue evitar erros. Como nos episódios citados acima, há multas absurdas que chegam até os motoristas. Nesses casos, a primeira providência é entrar com a defesa prévia (veja quadro) assim que a notificação de infração for emitida. Em julho deste ano, 2.021 novos recursos nessa instância chegaram ao Detran. No mesmo mês, 1.949 processos foram julgados e 398 deles, deferidos em favor dos condutores. ;A defesa prévia analisa se existe algum erro no auto de infração, como no nome do condutor, na placa do carro ou no local da multa. Se de fato for uma multa equivocada, ela logo é eliminada no julgamento desse recurso;, afirma o diretor de Controle de Veículos e Condutores do Detran, coronel Admir Santana.

De moto
Foi o que aconteceu com o motociclista José Carlos, 44 anos. De acordo com a multa, ele passava pelo Km 69 da rovodia DF-001 às 7h42 de uma quinta-feira, 25 de junho. Dirigia sua Honda CG verde, mas cometeu uma infração porque deixou de usar o cinto de segurança. O valor da multa: R$ 127,69, além de cinco pontos na carteira. Assim que recebeu a notificação em casa, José Carlos procurou o Departamento de Estradas de Rodagem (DER), emissor do documento. Ele conta que os agentes que o atenderam chegaram a rir da a penalidade e a cancelaram na mesma hora. Segundo o que informaram ao motociclista, a hipótese mais provável é que a letra ;Q; do verdadeiro infrator tivesse sido confundida com a letra ;O; da placa dele. ;Daqui a pouco vão multar motorista por não usar capacete dentro do carro;, ironiza.

O DER não tem fiscalização e apenas emite as infrações flagradas pelos policiais da Companhia de Polícia Militar Rodoviária (CPRv). O comandante da Companhia, major Glaumer de Araújo, admite os erros, mas defende que o percentual de incorreções é de apenas 2%. ;Afinal, somos humanos;, justifica. O major diz que os equívocos costumam ser detectados pela própria CPRv antes de os autos serem mandados ao DER. Os policiais não têm autonomia para cancelar as multas, mas avisam ao DER da possibilidade de enganos. ;Normalmente, as multas nem são enviadas. Nesse caso (do motociclista José Carlos), o erro não deve ter sido percebido;, diz.

O dono do Cadillac multado por estacionamento irregular, o advogado Roberto Nasser, 63 anos, não teve a mesma sorte. Ele perdeu o prazo para apresentar a defesa prévia e ainda não conseguiu se livrar da multa. A dita infração foi flagrada em 9 de março, às 14h58. O carro, um dos expostos no Museu do Automóvel, estaria parado em um local proibido na Quadra 1 do Setor Comercial Sul. ;Mas ele está sem bateria há 20 anos e não tem nem condições de rodar;, argumenta o advogado.

Foi a secretária do Museu do Automóvel, Daniela dos Santos Silva, que descobriu a existência da infração ao consultar a situação dos veículos expostos no local na internet (pois eles pagam licenciamento). Nasser pretende pagar a multa, no valor de R$ 85,13, para entrar com um recurso no Departamento de Trânsito. ;Mas duvido que vou ter êxito porque soube que o pessoal da Jari (Junta Administrativa de Recursos de Infração do Detran) não tem nem tempo de ler os recursos com calma;, acredita o advogado.

O número
398
Total de recursos contra multas aceitos pelo Detran em favor dos motoristas, em julho passado

O caminho para o recurso
# Antes de ser de fato multado, o condutor recebe uma notificação que deve detalhar o motivo da punição. O motorista tem 40 dias para entrar com uma defesa prévia contestando o documento se informações estiverem incorretas. O Código de Trânsito estabelece que o auto de infração deve ser arquivado se considerado inconsistente ou irregular;

# Quando a penalidade for aplicada, o motorista vai receber a multa, mas pode recorrer antes que ela vença. O recurso é apresentado ao Detran, que tem 10 dias úteis para enviá-lo à Junta Administrativa de Recursos de Infrações (Jari);

# A Junta tem até 30 dias para julgá-lo. Se a apelação for feita no prazo legal, o motorista não precisa pagar a multa;

# Caso a apelação não seja aceita pela Jari, o motorista ainda pode recorrer ao Contrandife ; o prazo para isso é de 30 dias. Nesse caso, porém, é obrigatório pagar a multa e, se o recurso for aceito, o dinheiro é devolvido.

Benefício ignorado
Os erros dos agentes também prejudicam deficientes físicos que, por lei, têm a prerrogativa de parar o carro em vagas reservadas em locais estratégicos dos estacionamentos públicos e particulares. O Correio recebeu duas denúncias de pessoas com dificuldade de locomoção multadas por usar a vaga especial. Em ambos os casos, nem o adesivo colado no para-brisa do veículo nem a autorização do Detran para usar as vagas impediu as penalidades.[SAIBAMAIS]

O servidor público Carlos Antônio Oliveira da Cruz, 52 anos, teve poliomielite quando criança. Ele se locomove com a ajuda de muletas e tem o carro adaptado desde que tirou carteira de motorista, há sete anos. A Junta Médica do Detran o autorizou a receber o adesivo. Mesmo assim, já foi multado três vezes por parar na vaga especial.

A mais recente foi este ano, quando o carro dele estava estacionado em uma das vagas para deficientes no Ministério da Cultura, onde trabalha. A multa custa R$ 53,21, a defesa prévia apresentada pelo servidor foi negada e ele diz que, dessa vez, não vai pagar a infração. ;Acho desaforo;, diz.

A historiadora Patrícia Silva de Castro, 44 anos, portadora de necessidades especiais, também levou multa por estacionar em uma vaga especial na 306 Norte, em 24 de outubro de 2008, apesar de também ter o adesivo concedido pelo Detran. Ela teve o recurso negado pela Jari, mas não pagou a multa, de R$ 85,13.

À pedido da reportagem, o diretor de Controle de Veículos e Condutores do Detran, coronel Admir Santana, consultou os processos dos dois condutores e admitiu o erro do órgão. No caso de Cruz, ele justificou que o adesivo está velho e pode ter sido confundido, pelos agentes, com algum falsificado. Segundo Santana, as novas credenciais (1)vão evitar confusões assim.

Santana também pediu que agentes do Detran fossem à 306 Norte para fotografar o local em que Patrícia foi multada. Ao analisar as fotos, ele concluiu que o equívoco foi causado por uma mudança no estacionamento. Ele garantiu que vai convocar os dois motoristas e autorizar o cancelamento das multas. (GR)


1 - Padronização
A Resolução n; 304 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), publicada em 18 de dezembro do ano passado, padroniza a emissão de credenciais para portadores de deficiência em todo o país. Pela norma, as autorizações para estacionar em vaga especial não são mais adesivos, mas um pedaço de papel que deve ser plastificado e colocado no painel do carro ou em outro local visível facilmente. Os Detrans de todo o país têm até dezembro do ano que vem para se adequar às novas regras