Em setembro de 1973, Ana Lídia era assassinada, aos 7 anos, com extrema crueldade. O crime parou Brasília. Foi o primeiro caso de repercussão na cidade. Vieram outros. Houve o caso Pedrinho ; raptado na maternidade horas depois do nascimento ;, o assassinato da adolescente Isabela Tainara, em 2007, entre outros. E, há 20 dias, mais um crime ganhou as manchetes dos jornais. O ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral José Guilherme Villela, 73, a mulher dele, Maria Carvalho Mendes Villela, 69, e a empregada da família, Francisca Nascimento da Silva, 58, foram assassinados a facadas dentro do apartamento do casal, em uma das áreas mais nobres de Brasília, a 113 Sul.
Na última semana, o Correio entrevistou três delegados de polícia que investigaram crimes de repercussão. A intenção era tentar entender os bastidores da investigação dos grandes casos policiais. Os três garantem: a pressão para que se descubra rapidamente os culpados é levada ao limite do suportável e vem de todas as direções: de parentes das vítimas, da imprensa, de representantes de classe, da própria cúpula da polícia e, a depender das relações das vítimas, de políticos e integrantes do poder Judiciário.
Das longas conversas ficou uma certeza: muito do que ouviram e viram durante os longos anos dedicados à polícia jamais será revelado. Há um sentimento comum difícil de definir em palavras. Talvez um misto de orgulho pelos casos desvendados, frustração pelos crimes insolúveis, indignação com fatos que não puderam mudar. Segredos que até hoje estão além da compreensão de quem jurou garantir o cumprimento da lei.
Quem vale mais
A experiência acumulada ao longo da carreira revela uma realidade cruel para uma grande parcela da população. Um policial ouvido pela reportagem e que pediu para ter o nome preservado diz, sem rodeios, que, dependendo de quem é a vítima, o tratamento é diferenciado. ;O morto vale mais ou menos dependendo de onde mora. Se é na periferia, é apenas ;mais um; para a equipe que vai ao local do crime. Nisso, perdem-se muitos detalhes importantes que podem solucionar o caso num tempo muito menor;, lamenta.
O delegado aposentado da Polícia Federal Geraldo José Chaves viveu os dois lados da profissão. Atuou como investigador, mas na maior parte da carreira ocupou cargos de confiança no alto comando da PF e foi secretário de Segurança Pública do DF, quando o governador era Wanderley Vallim. Para ele, a pressão só prejudica o trabalho. ;Às vezes, ela (pressão) é tão forte que não se consegue raciocinar direito. E isso só favorece o criminoso, que pode estar muito mais próximo da polícia do que se imagina;, destaca.
Geraldo Chaves fez parte da comissão que investigou, durante dois meses, o assassinato de Ana Lídia. Mas essa é uma história que ele prefere esquecer. ;É uma situação irremediável. O crime já prescreveu, portanto, mesmo se os criminosos aparecerem, não serão punidos.; A frase soa como um lamento profundo. O delegado não consegue esquecer as atrocidades a que a menina foi submetida. Menos ainda, o desfecho do caso. ;Foi o crime mais bárbaro de que tive notícia em toda a minha vida.;
A comissão de delegados não teve tempo para concluir as investigações. O grupo recebeu ordens para devolver o inquérito para a Secretaria de Segurança Pública. ;Não houve qualquer explicação. Talvez a investigação começasse a incomodar demais. Depois disso, o caso ficou como uma gota de água sob o sol forte. Foi-se evaporando, evaporando, até sumir completamente.; Os culpados nunca foram identificados e punidos.
Tempo ao tempo
É consenso entre os profissionais ouvidos pelo Correio que um trabalho de investigação criterioso e consistente leva tempo para ser concluído.
O delegado da Polícia Civil aposentado Antônio Cavalheiro tem uma larga experiência à frente de casos que chocaram a opinião pública. Entre eles, o assassinato do estudante João Cláudio Cardoso Leal, espancado até a morte na saída de uma boate, em 2000, e do empresário José Saliba, em 2004, morto ; segundo a polícia ; a mando do próprio filho. ;A pressão é normal. Quando a solução de um crime começa a demorar, a cobrança é maior. O importante é exaurir cada uma das linhas de investigação e não se deixar abalar;, diz. ;Quando você pega um caso como esse, não tem dia, não tem noite. Você não pode parar. Cada dia que se perde, fica maior a distância entre a polícia e o criminoso.;
Sobre o triplo homicídio da 113 Sul, cujas investigações estão a cargo da delegada Martha Vargas, chefe da 1; DP (Asa Sul), Cavalheiro sugere que um dos caminhos é a divulgação de fotos das joias roubadas. Para ele, é possível que a família tenha registros fotográficos ou filmagens em que Maria Carvalho esteja usando os objetos. ;Algumas joias são derretidas. Outras só têm valor se forem vendidas como obras de arte. Quem roubou precisa se desfazer delas;, alerta. Cavalheiro diz não ter dúvidas de que a polícia desvendará o crime, mas ressalta que a sociedade precisa ter paciência.
Conviver diariamente com o pior que o ser humano pode produzir deixa marcas profundas. ;Tem cenas de crimes que você não esquece;, diz Cavalheiro. Perguntado se já chorou diante de um desses cenários macabros, ele confirma que inúmeras vezes. ;Mas é um choro contido na alma, aqui dentro (diz colocando a mão no peito), entende? O bambu é forte por conta dos nós que tem, com o ser humano é a mesma coisa. Ao longo da vida, você vai acumulando nós. Eu tenho muitos deles;, compara.
O delegado Antônio Gonçalves Pereira dos Santos, titular da Delegacia Estadual de Furtos e Roubos de Veículos, de Goiás, também carrega as suas feridas. Uma delas, aberta durante a investigação que apurou se Vilma Martins ; a mulher que roubou Pedrinho de uma maternidade de Brasília; também havia sequestrado Roberta Jamilly. Foi Antônio Gonçalves quem conseguiu provar que Roberta era, na verdade, Aparecida. ;A mãe biológica da Roberta ficou extremamente fragilizada depois que a filha foi roubada. Isso mudou toda a vida dela para pior em todos os aspectos. Quando a Roberta não conseguiu acolhê-la, aquilo mexeu muito comigo;, relata.
Nas manchetes
Até chegar ao desfecho do caso, passaram-se cinco meses. Um período bastante conturbado, segundo o delegado. ;Veículos de comunicação de todo o país mandaram equipes para cá. E toda hora queriam saber o que eu tinha feito ou deixado de fazer. Quando a imprensa se interessa pelo caso, torna-o relevante. Mas, para nós, todo caso é relevante. A diferença é que nem todos viram manchete de jornal;, compara. Para Antônio Gonçalves, o importante é manter o equilíbrio e um certo distanciamento das cobranças.
Baseado na experiência como investigador e no que é divulgado pela mídia, o delegado acredita que, no crime da 113 Sul, o autor matou as três vítimas no primeiro golpe. ;Se as vítimas não estavam dopadas, teriam reagido tentando se defender com as mãos e braços. Como não há ferimentos, isso reforça a tese de que o primeiro golpe matou. Os que vieram depois foram por maldade;, supõe.