Horas antes de ser sedado, há três semanas, o paciente recém-chegado à emergência do Hospital das Forças Armadas cantou um sambinha para as enfermeiras que o assistiam: ;Lá em Vila Isabel/quem é bacharel/não tem medo de bamba;. Carioca nascido no bairro de Noel Rosa e de Martinho da Vila, Ernesto Silva é candango desde 1953, mas foi do Rio de Janeiro que se lembrou antes de ficar sedado durante dez dias.
Atacado por uma pneumonia dupla que o mantém internado na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Brasília desde o início da noite de 25 de agosto, o mais importante candango pioneiro vivo (ele faz questão de ser considerado candango e pioneiro), Ernesto Silva tem se recuperado vagarosa e continuamente. ;É um forte;, diz o diretor-clínico do Hospital Brasília, Renato Curi (ver quadro). O último boletim médico de ontem informava que ele estava ;consciente, fora de ventilação mecânica, com exames laboratoriais melhores e sinais vitais estáveis;. Nesses 21 dias de internação, houve momentos em que Sônia, a mulher dele, teve medo de nunca mais ouvir a voz macia, quase dengosa, do marido. Quando soube que ele, na segunda-feira passada, havia jogado beijos para a enfermeira, ela passou a acreditar que vai levar o marido de volta para casa.
Uma grande festa estava sendo preparada para este 17 de setembro, dia em que o pioneiro número 1 de Brasilia completa 95 anos. Com a doença, a festa foi adiada, mas uma das enteadas do doutor Ernesto, a psicóloga Cristiane Alves, prepara uma comemoração à moda UTI, caso ele amanheça hoje em condições de receber os pouquíssimos convidados. ;Se o médico liberar, vamos levar um balãozinho metálico, um chapéu de aniversário, e uma caixinha de bolo só pra colocar uma estrelinha em cima. E vamos cantar parabéns bem baixinho;, planeja.
Cristiane tem sido testemunha do gosto que Ernesto Silva tem pela vida. ;Esses dias cheguei lá e ele estava chamando a enfermeira de bonita. E ele está com traqueostomia (abertura da traqueia para a passagem do ar). Eu disse a ele que ia contar pra minha mãe e e ele me jogou beijinhos, como quem diz ;não conta, não;;. Também joga beijinhos para as enfermeiras e quando os médicos passam pelo velho candango adoentado e o cumprimentam, ele retribui fazendo um aceno com o pé, porque as mãos estão imobilizadas pela medicação intravenosa.
;Ernesto é um danado;, conta Sônia, um pouco mais aliviada depois de dias de quase desespero. ;Veja você, até hoje, aos 94 anos, ele não pode ver uma perna bonita que vira o rosto pra acompanhar e depois olha pra cima quando vê que estou observando;. Sônia, 71 anos, rosto delicado, cabelos claros e olhos azuis, é a terceira mulher de Ernesto Silva. Conheceram-se há mais de 20 anos e estão juntos há 12.
O homem danado diante de uma mulher bonita é um candango pioneiro mais danado ainda diante das sucessivas agressões ao projeto do Plano Piloto. ;Admiro a persistência do Ernesto na defesa de Brasília. Ele tem uma força de vontade impressionante. Eu, no lugar dele, já teria desistido;, diz Sônia.
Na noite anterior à sua internação, Ernesto Silva nem quis ver Caminho das Índias. Ficou na mesa da sala rascunhando o discurso para uma solenidade do dia seguinte. Por volta das 22h, o casal foi para o quarto. ;Ele ainda fez umas palavras cruzadas, como faz toda noite, pegou na minha mão, deu boa noite e dormiu. Estava ótimo, não estava tossindo, nem espirrando, nem febril, não reclamou de nada. Acordei com ele tremendo de frio, devia ser umas três da manhã. Estava com 38 graus de febre.; Pouco depois, Ernesto Silva estava sendo encaminhado para a emergência do HFA (ele é militar da reserva). Na tarde do dia seguinte, foi transferido para a UTI do Hospital Brasília
Naquela segunda-feira, Ernesto Silva havia cumprido cinco compromissos, conta Jarbas Marques, vice-presidente do IHGB. Estudioso da história de Brasília, filho de pioneiro, Marques conta que, menino, ouvia um cantiga cantada pelos candangos: ;O mel é com o Israel, o pão é com o Sayão e o resto é com o Ernesto;. O todo-poderoso Israel Pinheiro, presidente da Novacap, era quem tinha o controle do dinheiro. Antes de começar a abrir a rodovia Belém-Brasília, Sayão comandava as obras. E Ernesto Silva era o diretor-administrativo.
;Ele teve o controle de tudo o que se pode imaginar durante a construção de Brasília e sabe o que ele tem? Um apartamento;, comenta o coronel Affonso Heliodoro, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Brasília. Heliodoro costuma chamá-lo de ;o pioneiro de antes;, porque já participava dos estudos para demarcação da área onde a nova capital seria construída antes mesmo de Juscelino Kubitschek ser eleito presidente da República.
No bufê da sala do apartamento de Ernesto Silva há uma folha de papel ofício com uma lista dos amigos que têm ligado para ter notícias do estado de saúde do pioneiro de antes. Há mais de cem nomes, a maioria deles com mais três estrelinhas marcando as vezes que cada um ligou. Mas o candango mais importante da cidade não gosta de ser visto em cama de hospital. Portanto, os amigos devem esperar um pouco mais para visitá-lo.
Ainda não se pode prever quando Doutor Ernesto assistirá ao próximo jogo do Fluminense, quando vai comer tutu de feijão ou participar de uma reunião na Aliança Francesa, do qual é presidente, ou do Instituto Histórico e Geográfico de Brasília, do qual é ex-presidente, ou da Associação dos Candangos Pioneiros de Brasília. Ou quando vai conhecer ou revisitar mais uma cidade. Conhece mais de 300 e a sua preferida não é Brasília. São Veneza e Las Vegas. Mas a capital da arquitetura moderna, que ele ajudou a construir, é objeto de admiração e apaixonada vigilância.
A mãe dizia que seu filho mais velho, de uma carreira de oito, era ;muito saliente;. A essa ;saliência; Ernesto Silva atribui suas conquistas. Gosta de uma briga: ;O aborrecimento me excita. Vou à luta e não é para perder;. Mas já disse que sabe perder. E vive perdendo nos últimos tempos muitas de suas batalhas em defesa do projeto do Plano Piloto. Segue ganhando a luta pela vida, há 95 anos. Hoje, às 18h30, haverá uma missa no Santuário de Fátima, na 906 Sul, para celebrar o aniversário do homem mais importante de Brasília.
Cautela
O diretor-clínico do Hospital Brasília, Renato Curi, informou ontem à noite que Ernesto Silva ;está sem ventilação mecânica há quase 48 horas, está melhorando, consciente e interagindo;. Os exames laboratoriais também indicaram melhoria no quadro infeccioso. ;Mas é preciso cautela devido à idade do paciente e à gravidade da infecção.; Mesmo cauteloso, o médico informou que ;as perspectivas são boas;, e que o corpo clínico que o atende ;está otimista;, mas ainda não há previsão de saída da UTI. ;No caso dele, cada dia é um dia.;