Há histórias que se escrevem com a intensidade dos sonhos e da esperança de quem as conta. E esta, além de toda intensidade, precisa literalmente andar. Seguir, caminhar com os próprios passos. Tatear, sentir, formigar. Cair, levantar de novo. Doer. Até sangrar. Não importa. Ir cada vez mais longe. A personagem desta página é uma moça de sorriso lindo, olhos verdes contagiantes. Aos 22 anos, naquele 11 de maio, há exatos quatro meses, ela disse ao Correio: ;Tive que morrer para entender que preciso ser melhor pra mim, para os outros e para Deus;.
Naquela tarde, dentro do apartamento no Sudoeste, onde mora com a família, seus passos eram conduzidos pela cadeira de rodas. Continuam guiados pela mesma cadeira, mas seus olhos, se já brilhavam, agora brilham ainda mais. Terça-feira, em companhia da mãe, ela embarca para San Diego, nos Estados Unidos, a fim de experimentar um novo e revolucionário tratamento. Ficará lá por seis meses.
Um fisioterapeuta americano desenvolveu uma técnica baseada na repetição dos movimentos e no otimismo. O método, chamado Project Walk, não promete milagre, mas fortalece, antes de qualquer coisa, a disposição interior de quem precisa e tem condições de voltar a andar. ;Os exercícios são feitos em aparelhos que ainda não existem no Brasil;, diz a moça das pernas emprestadas. E continua: ;Em seis meses, 70% dos pacientes que se submeteram a esse tratamento voltaram a andar, de alguma forma. Sei que vou conseguir. E não importa se voltarei andando com andador, de muletas, eu preciso tentar...;
Na tarde de ontem, Fernanda Fontenele recebeu, 120 dias depois, o Correio, para a segunda entrevista. Emocionada, contou: ;Você não imagina o que aquela reportagem causou na minha vida. No dia em que foi publicada, meu telefone começou a tocar às 6h da manhã. Recebi ligações de todos os cantos do país. E-mails de países que nem imaginava. Vieram de Portugal, dos Estados Unidos, da Austrália e da Itália. Isso sem contar as inúmeras mensagens no meu celular. Todo mundo quis colaborar;.
E conta, ainda mais emocionada, como essa ajuda, de uma gente completamente anônima, chegou pouco a pouco. ;Teve quem depositou R$ 1,23, quem colocou R$ 10 e gente que fez depósito de R$ 5 mil. Eu nunca pensei que minha história pudesse ir tão longe;, ilustra. Os amigos, cerca de 15 mais próximos, se engajaram na luta por Fernanda. Promoveram festas, shows com artistas famosos, churrascos, peças de teatro com a renda revertida para a viagem, camisetas para venda e também criaram o site www.andafernanda.com.br, onde a história dela é contada.
[SAIBAMAIS]Deu certo. Dos R$ 120 mil que necessitava para partir em busca do sonho de voltar a andar e viver ali por seis longos meses ; pagando moradia e alimentação ;, R$ 100 mil já chegaram à conta bancária. Faltam ainda R$ 20 mil. Mas nem isso a fez desistir. ;A gente vai conseguir;, diz a menina de fé inabalável. A passagem está comprada. O passaporte tirado. Visto americano concedido. E as malas cheias de esperança. Terça-feira, Fernanda e a mãe embarcam rumo a San Diego, na Califórnia. A filha sabe que será uma tentativa. ;Eu tenho o direito de acreditar nela;, avalia.
Sonhos adiados
Há seis anos, Fernanda, então com 17 anos, modelo, a estudante mais cobiçada da escola pelos garotos e eleita a rainha da beleza, só pensava em encarar o vestibular. A vida lhe sorria, como sorri para todo adolescente. Num belo sábado de outubro, na chácara dos pais, na região do Lago Oeste comemorou-se o aniversário do irmão dela.
Os pais liberaram o lugar. Fernanda foi com o namorado, um rapaz de 19 anos. Havia mais de 50 convidados. Todos jovens e cheios de energia. A festa foi regada a muita cerveja e música eletrônica. Na volta para casa, à noite, estrada escura. Fernanda e o namorado haviam ingerido algumas latinhas. Ele dirigia o carro. No meio do caminho, o rapaz perdeu o controle da direção. Bateu em outro carro que vinha em sentido contrário. A colisão, com extrema violência, atingiu o lado do carona, onde Fernanda viajava. Ela quase foi degolada pelo cinto de segurança.
Os passageiros do outro carro sofreram leves luxações. O namorado de Fernanda teve um corte na cabeça e quebrou o braço. Ela, ainda consciente, foi retirada do carro sem sentir mais braços e pernas. Levada às pressas ao Hospital Regional de Sobradinho, o médico de plantão logo recomendou que a menina fosse transferida para outro local. Fernanda chegou ao Santa Luzia. Lá, uma ressonância magnética revelou: lesão medular, na altura da C6 e C7 cervical. O que significava? Fernanda estava tetraplégica. Mas ela não sabia, ainda, a gravidade do seu estado. Submeteu-se a duas cirurgias, em quatro dias.
Duas semanas depois, conseguiu uma vaga no Hospital Sarah do Aparelho Locomotor, na Asa Sul. Lá, contaram-lhe o que era uma lesão medular. ;Foi quando a ficha caiu. Até então, imaginava que logo estaria andando;, lembra. Começaram as sessões de fisioterapia. Fernanda foi levada à unidade do Sarah do Lago Norte. A mãe se aposentou para cuidar da filha. Das necessidades mais íntimas à alimentação, tudo virou dependência, em tempo integral. Meses depois, porém, com determinação nas sessões de fisioterapia, vencendo as terríveis dores e acreditando que conseguiria, ela sentiu os braços.
Aos poucos, conseguiu movê-los. Graças também às caras aulas de equoterapia (fisioterapia montada em cavalos, para manter o equilíbrio e o tônus muscular ; que custavam à época R$ 200 a hora e alteraram as finanças da família), ela conseguiu melhorias surpreendentes. Hoje, mexe os dois braços e tem perfeito controle do tronco. A tetraplegia virou paraplegia. Com força de vontade, andando com pernas emprestadas, prestou vestibular para jornalismo. Passou. Foram quatro anos de luta. Era uma das melhores alunas da sala. Virou jornalista. E agora, seis anos depois, a menina de 22 anos quer voltar a andar. Seja como for. ;;Quero me sentir livre de novo. Depois, agradecer a todos que me ajudaram e fazer alguma coisa por quem precisar.;; Há histórias que têm a força e a emoção do seu personagem. Esta é uma delas.
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