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Bailarino brasiliense corre contra o tempo para conseguir apoio e viajar para a Áustria

O sol batia forte, numa tarde quente de 2005, quando Hilquias Fernando de Oliveira criou coragem. Saiu de casa, em Taguatinga Norte, pegou um ônibus e rumou para o coração de Brasília. Durante o trajeto, ensaiou várias vezes a forma como pediria uma bolsa para fazer aulas de balé no Centro de Dança do Distrito Federal. Chegou à sala 1, estufou o peito e disse a Gis;le Santoro que queria muito ser aluno dela. A professora pediu uma prévia, para conhecer as habilidades do rapaz, então com 17 anos. Ele deu piruetas no ar. Mostrou o que sabia fazer. A aula experimental lhe garantiu uma vaga na turma.

O olhar crítico de Gis;le não falhou ao admitir Fernando no grupo de dançarinos. O jovem é talentoso. Hoje, com 21 anos, tem a chance de voar ainda mais alto. Conseguiu outra bolsa, dessa vez na Europe Ballet Conservatory St. P;lten, uma escola de balé clássico na Áustria. Com tudo pago, inclusive hospedagem e ajuda de custo. O que falta é a passagem de avião para o Velho Mundo. ;Tentei patrocínio com empresários, mas os pedidos foram negados. Conversei com familiares, só que eles não têm condições financeiras;, lamenta.

Fernando não se dá por vencido. O início das aulas está marcado para 7 de setembro. O rapaz torce, reza. Tem praticamente certeza de que vai comemorar o Dia da Independência brasileira em terras austríacas. Lá, vai fazer história. Passará a usar o nome artístico de Fernando de Oliveira. Terá três meses de estágio probatório na escola europeia. ;Será um período de muita dedicação. Vou viver o balé intensamente;, promete o rapaz. O esforço será recompensado e a bolsa poderá ser prorrogada por mais um ano e meio.

A internet é a porta de entrada. Fernando faz buscas incansáveis em páginas virtuais de academias de balé pelo mundo afora. Foi assim que ele conseguiu a bolsa de estudos em St. P;lten, cidade próxima à capital austríaca, Viena. Mandou currículo, fotos e vídeos para a escola europeia. O diretor olhou tudo e não hesitou em fazer o convite. ;Sei que os austríacos são mais frios, mas consegui;, comemora. ;A cidade também é mais fria, diferente do que estamos acostumados no Brasil.; O clima gélido será driblado com muitas piruetas, movimentos que o fazem suar e esquentam seu corpo.

Os passos sincronizados do morador de Taguatinga Norte já tiveram outra chance de ir além do Planalto Central. No fim do ano passado, Fernando fez a mesma coisa. Enviou o material para uma escola norte-americana, em Washington. Foi aceito, mas não embarcou para os Estados Unidos pelo mesmo motivo: faltou dinheiro para pagar o traslado aéreo. ;Fiquei muito triste;, lembra. Mas havia outro agravante: o rapaz não teria onde morar. ;Eu daria um jeito. Pagaria hospedagem com o cachê de apresentações ou arrumaria emprego em um horário diferente do das aulas;, diz.

A paixão
Ainda criança, Fernando ingressou em um grupo de evangelização. Dançava em apresentações religiosas na Igreja Jesus Vive, da 915 Sul. O tempo passou e, aos 16 anos, ele decidiu se profissionalizar, aprender técnicas. Fez uma aula experimental de street dance na Academia de Ballet Lúcia Toller. O professor viu que o futuro do rapaz estava em outra modalidade de dança, o balé clássico. Fernando, então, pediu uma bolsa integral na escola. Conseguiu. Era a chance de colocar, de vez, as sapatilhas e ganhar o mundo.

Um ano depois, migrou para o Centro de Dança do DF, para a sala de Gis;le Santoro. ;Ela fez dança em mim;, emociona-se. Fernando juntou-se ao grupo avançado de bailarinas ; é o único homem da turma. Treinava em uma barra separada das demais alunas. Alongava o corpo de 1,84 metro. Saltava. Caía, mas se levantava. Começava à tarde e só voltava para casa depois das 21h. Caminhava sozinho pela escuridão da Via N2, em direção à Rodoviária do Plano Piloto para pegar o ônibus. ;Tentaram me assaltar umas três vezes.; No dia seguinte, começava tudo de novo.

Desde essa época, o rapaz treina todos os dias da semana. A atividade exige preparo físico. Fernando pesa 75 quilos. Quer perder mais três. Faz uma dieta disciplinada. Suco e frutas no café da manhã, salada e um pouco de carne no almoço e gelatina à noite, antes de dormir. ;Muitas vezes, esqueço, de propósito, que o lanche do meio do dia existe;, admite. ;Mas, ainda bem, não sofro distúrbios alimentares;, esclarece.

A certeza
Foi difícil assumir que queria viver do balé. As primeiras piruetas de Fernando foram feitas às escondidas, longe dos olhos da família goiana. A mãe do rapaz, voluntária em atividades religiosas na igreja que frequenta, não gosta do balé. Mas deixa o filho livre para ;fazer o que quiser;. Na QNA 4 de Taguatinga, além dele e da matriarca, moram as duas irmãs do bailarino. A de 29 anos está desempregada e a de 26 trabalha como recepcionista. ;Quando contei minha paixão a elas, recebi o silêncio como resposta;, relata.

Mesmo assim, ele não desiste. Assiste a apresentações clássicas nas horas livres. Respira o balé. Em casa, não dança porque falta espaço. Mas alonga-se o tempo todo. E já fez loucuras. Chegou a juntar o dinheiro ganho com apresentações e viajou para o Rio de Janeiro. Queria fazer um curso de verão, mas não tinha onde ficar. Resultado: dormiu durante quatro dias no chão do Aeroporto Santos Dumont. Para Fernando, todos os devaneios valem a pena. ;Um dia, vou ser reconhecido. Vou ter a prova de que deu certo;, aposta.


COMO AJUDAR
As aulas de Fernando, na Áustria, começam em 7 de setembro. O rapaz precisa chegar lá antes disso. Toda ajuda é bem-vinda. O telefone do bailarino é 9202-8336.

De dormitório a palco de arte
No fim do ano passado, Fernando teve outra chance para estudar fora do país, mas a falta de dinheiro o impediu de ir

Antes de virar um reduto artístico, o Centro de Dança do DF servia como dormitório para funcionários públicos da região. Atualmente, tem cinco salas que abrigam ensaios e aulas de balé clássico e contemporâneo, jazz e outras modalidades. Todos os ambientes têm 6m de altura, chão de tábua corrida, parede de espelhos e barras móveis e fixas. A maior sala, a de número 1, tem 217 metros quadrados. Metade da área é revestida de linóleo, uma espécie de piso emborrachado.

Quatro das cinco salas passam por licitação. A Secretaria de Cultura abre anualmente a concorrência para que os interessados aluguem o espaço. Os ganhadores do processo têm de pagar uma quantia fixa ao órgão distrital. Ensaios e atividades abertas à comunidade custam R$ 5 por hora, enquanto os responsáveis por aulas cobradas têm de arcar com R$ 10 a cada hora que usam o espaço do Centro de Dança.