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Mortes de pacientes na fila de transplante renal triplicam nos últimos oito anos

O sonho da aposentada Ana Gonçalves da Costa, 39 anos, causa estranhamento à maioria das pessoas. ;A minha grande vontade é tomar um copo enorme de água. Daqueles bem gelados;, conta. O que parece um ato prosaico pode causar a morte dessa mulher, cujos rins há cinco anos pararam de funcionar. Ana faz parte de um grupo de 2 mil brasilienses que receberam o diagnóstico de insuficiência renal. O dia a dia desses pacientes é doloroso. Eles precisam passar 12 horas semanais ligados a uma máquina que filtra o sangue. E ainda têm que enfrentar outro grande desafio: o medo de não resistir à doença.

O receio desses pacientes é justificado. A quantidade de óbitos por insuficiência renal não para de crescer na capital federal. Em 2000, foram 56 mortes. No ano passado, esse número saltou para 167. Em apenas oito anos, o total de pacientes que não resistiram ao tratamento triplicou. E o fenômeno não pode ser atribuído apenas ao crescimento populacional. De 2000 para cá, a quantidade de habitantes da cidade subiu 27%, enquanto a quantidade de óbitos por falência renal aumentou 200%. No mesmo período, o número de transplantes de rins caiu quase à metade. No início da década, eram realizados quase 100 por ano. Em 2008, as equipes realizaram 51 cirurgias.

As razões dessa alta de casos fatais vão desde falhas na prevenção a problemas no sistema de atenção primária de saúde. Sem acompanhamento correto, pessoas com hipertensão ou diabetes se transformam em potenciais doentes renais. As dificuldades para conseguir tratamento também influenciam no alto número de mortes. A falta de hemodiálise ou a realização inadequada do tratamento reduzem significativamente o tempo de vida dos doentes renais.

A terapia renal substitutiva, nome técnico da hemodiálise, é essencial para a sobrevivência dos pacientes que perderam os rins (veja quadro ao lado). Nesse caso, uma máquina faz o trabalho que deveria ser executado pelo sistema urinário. O sangue do paciente passa pelo aparelho para ser filtrado e é injetado novamente nas veias e artérias.

Além de demorado, o processo é extremamente doloroso. ;Eu saio da hemodiálise muito fraca. É muito difícil fazer o tratamento, eu tenho que acordar às 4h para chegar às 7h na clínica;, explica Ana Gonçalves, que há três anos está na fila de espera por um transplante. A moradora de São Sebastião faz as sessões em Sobradinho, já que não há vagas em nenhuma clínica perto de sua casa. No processo de hemodiálise, toxinas como a ureia e o ácido úrico são eliminadas do organismo. Cada paciente tem que ficar cerca de quatro horas em diálise, três vezes por semana.

Mas no Hospital Regional da Asa Norte (Hran), os doentes renais não conseguem acesso adequado ao tratamento que os mantêm vivos. O setor de hemodiálise da unidade de saúde tem 12 máquinas, mas atende a cerca de 24 pessoas por turno. Sem capacidade para oferecer quatro horas de filtragem de sangue aos renais, os médicos fazem a chamada ;dobradinha;: duas pessoas dividem o horário.

;Situação trágica;
Com isso, os doentes ficam apenas duas horas ligados ao equipamento, em vez das quatro horas recomendadas. ;É uma situação trágica para os pacientes e também para as equipes. Não temos como escolher quem vai morrer e quem vai viver, então optamos por dividir os turnos;, denuncia um funcionário do Hran, que falou ao Correio sem se identificar. ;Mas sabemos que essa atitude vai acabar matando os pacientes de qualquer forma;, acrescenta a fonte.

As consequências dessa redução involuntária do tempo de hemodiálise são fatais. Uma diálise ruim aumenta os riscos de outras doenças como o infarto. Os pacientes também sofrem alterações do volume corporal e, com isso, ficam constantemente inchados.

Na tarde da última sexta-feira, o aposentado Júlio César Torreão Smith, 60 anos, ficou uma hora e meia na diálise do Hran ; menos da metade do tempo recomendado. ;É horrível. Depender da diálise para viver não é fácil;, emociona-se. A descoberta da doença foi um baque para o aposentado. Depois de ir ao médico três vezes por causa de um inchaço inexplicável no corpo e de ser medicado para retenção de líquido, teve uma crise e foi hospitalizado. ;Só então descobri que tinha perdido um rim e o outro funciona com apenas 10% da capacidade;, conta. Júlio César está na fila do transplante. É o paciente de número 132. Mas até lá, luta para conseguir vaga numa clínica particular e assim ter garantido o direito ao tratamento que pode salvá-lo.

Atendimento será ampliado
Das 2 mil pessoas com insuficiência renal em Brasília, 1,2 mil têm que fazer hemodiálise. Os 800 restantes ainda não necessitam da terapia renal substitutiva ou já foram transplantados. O número de pacientes cresce tão rapidamente que o governo começou a terceirizar os serviços de terapia renal. Hoje, 75% dos doentes fazem hemodiálise em clínicas particulares pagas pelo Sistema Único de Saúde (SUS)(1). Somente 300 são submetidos às sessões nos hospitais públicos, onde faltam equipamentos e pessoal para um tratamento completo.

A Secretaria de Saúde quer reduzir a dependência da rede privada e acabar com a falta de vagas na hemodiálise. Para isso, serão criadas mais 440 vagas para tratamento nos hospitais de Base, Hran, e do Gama. Só no Hospital Regional de Ceilândia, o setor terá capacidade para atender 200 novos pacientes. O coordenador de Nefrologia da Secretaria de Saúde, Emmanuel Cícero Dias Cardoso, explica que a quantidade de doentes renais cresce cerca de 10% ao ano. ;A única maneira de achatar essa curva é termos um trabalho de prevenção mais efetivo. Pacientes hipertensos ou diabéticos devem receber atenção especial para não evoluírem para um quadro de insuficiência renal crônica;, destaca Emmanuel.

Ele garante que a Secretaria de Saúde está fazendo um estudo para melhorar os serviços oferecidos à população. ;Estamos identificando a população de doentes renais de acordo com sua região, para oferecer hemodiálise mais perto da casa dos pacientes. Queremos ainda diminuir a dependência com relação ao setor privado. Hoje temos sete clínicas particulares credenciadas;, explica o coordenador de Nefrologia.

600 aguardam por um rim
Número de cirurgias no Distrito Federal caiu, em oito anos, de 94 para 51. Secretaria de Saúde espera reverter o quadro este ano

Enquanto lutam para conseguir vagas na hemodiálise, os doentes renais se angustiam com uma outra espera. Quase 600 pacientes estão na fila do transplante. O Distrito Federal, que há oito anos foi referência nacional, hoje não consegue atender a demanda por esse tipo de cirurgia. Em 2000, as equipes da capital federal transplantaram 94 pacientes. No ano passado, apenas 51 doentes receberam um novo órgão.

Apesar de os índices serem insatisfatórios em comparação com os registrados no início da década, o programa de transplantes da Secretaria de Saúde dá sinais de recuperação. Nos seis primeiros meses deste ano, foram 34 cirurgias. Se esse ritmo se repetir no segundo semestre, as equipes de transplante da capital federal vão chegar perto do desempenho de oito anos atrás.

Em 2000, quando o Hospital de Base (HBDF) tinha 33 leitos para os setores de transplante e nefrologia, o Distrito Federal ocupava o primeiro lugar no ranking nacional com maior índice de cirurgias para cada milhão de habitantes. Em 2008, o DF ficou na sétima posição. Hoje, o Hospital de Base tem apenas 14 leitos divididos entre os setores de transplantes e nefrologia.

Além da falta de equipes e leitos e da resistência das famílias em autorizar a retirada dos órgãos, outra dificuldade é a identificação rápida da morte encefálica do paciente. É preciso remover rins, fígado e coração antes de uma parada cardíaca. Entretanto, muitos hospitais não estão bem equipados para verificar o fim das atividades cerebrais dos possíveis doadores. As equipes necessitam de equipamentos como o eletroencefalograma, capaz de verificar com precisão que o doador teve morte encefálica.

Treinamento
A coordenadora da Central de Transplantes do DF, Daniela Salomão, explica que a meta da Secretaria de Saúde é capacitar os funcionários da rede pública e aumentar ainda mais o número de cirurgias. ;Fazemos treinamento com as equipes sobre o reconhecimento da morte encefálica e a importância de notificar a central de captação;, detalha Daniela. ;Também trabalhamos muito com campanhas de conscientização da população sobre a doação de órgãos;, acrescenta a coordenadora.

Segundo ela, a retomada do programa de transplantes também pode ser atribuída ao credenciamento de novas unidades autorizadas a fazer cirurgias. Até o ano passado, apenas o HBDF estava credenciado para esse tipo de procedimento. Em março de 2008, o Hran começou a realizar transplantes intervivos, quando o doador é um parente do paciente. O Hospital Universitário de Brasília também conseguiu se credenciar para fazer a cirurgia.

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