Vinte de agosto de 2009, 16h. Registrem esse dia. É uma tarde histórica. Um encontro pra lá de especial. De um lado, um homem de chapéu de palha, calça social, camisa de manga comprida branca e sapatos engraxados com esmero. Do outro, um homem de camisa salmão, calça esporte e sandálias. Dois magos. Duas estrelas. Duas constelações. Um nunca tinha visto o outro, embora estivessem, cada um na sua trajetória, sempre ligados. O de calça social e chapéu conhecia o de camisa salmão pela televisão, pelos jornais, pela importância dele no carnaval e pela fama que corria mundo afora. O de camisa salmão ficava imaginando como aquele homem magrinho, com força de touro, havia trazido e incorporado o bumba meu boi em pleno cerrado.
Um sabia do outro. Mas um nunca tinha visto o outro. Na tarde de ontem, o homem de camisa social e sapatos engraxados como se fosse a uma festa deixou a casa modesta onde mora em Sobradinho e foi ao encontro do homem de sandálias que o esperava em uma mansão com vista cinematográfica, a casa de um amigo onde está hospedado desde que veio morar em Brasília, às margens da ML 12 do Lago Norte. Um se chama Teodoro Freire, de 89 anos. O outro, João Clemente Jorge Trinta, 75 (ou melhor, Joãosinho Trinta, com %u201Cs%u201D mesmo, coisas de João). Um fez o boi e o tambor de crioula maranhenses ecoarem pelos quatro cantos do DF. Trouxe zabumbas, matracas e pandeirões para ecoar na terra de JK.
O outro se tornou o maior carnavalesco de toda a história do Brasil. O homem que mudou os desfiles do Rio de Janeiro - e por tabela de todo o país. O homem que fez, em 1978, uma negra careca dançar com um príncipe. E naquele mesmo ano, declarou, respondendo a críticas de uma cambada de gente que só vive de teoria e teses concluídas a partir do próprio umbigo: "Quem gosta de pobreza é intelectual. Pobre gosta mesmo é de luxo, de beleza". A Beija-Flor arrasou naquele ano. Coisas de Joãosinho.
Pois bem. Na tarde quente de ontem, naquela casa de cinema, esses dois homens se encontraram. Dois maranhenses, com histórias muito pessoais, mas ao mesmo tempo muito coincidentes. Teodoro nasceu na Baixada Maranhense, num lugar chamado São Vicente de Ferrer. Joãosinho veio ao mundo em São Luís, a capital. Mas logo Teodoro foi morar na cidade, ainda menino de calça curta, aos 13 anos. Lá, arrumou emprego na quitanda de um português, na Praia Grande. À noite, em vez de ir para o colégio, fugia para ver o boi dançar. A prima mais velha, responsável pelo menino, descobriu a artimanha, ralhou com o moleque. Nada adiantou. Ele se inebriava com a batida das matracas e dos pandeirões. "Aprendi só o ABC. O boi era sagrado pra mim", confessa.
No mesmo ano em que Teodoro fugia para ver boi, nascia João, no centro da cidade de azulejos coloniais. Lá, os dois nunca se encontraram. João se encantou com o teatro e o balé. Mas logo percebeu que ali, naquela época, não havia espaço para a sua arte. Era preciso ir bem longe. Em fevereiro 1951, aos 17 anos, pegou um barco e partiu para o Rio de Janeiro. Chegou num domingo de carnaval. Os olhos do menino João nunca mais se esqueceram daquela festa que presenciou por toda a cidade. Anos depois, conseguiu uma vaga no Teatro Municipal. O menino de 1,58m virava bailarino na então capital do país.
Em 1953, aos 33 anos, com passagem de avião paga por um bom amigo, Teodoro também deixou São Luís. Foi tentar a vida no Rio de Janeiro. Lá, virou faxineiro de um prédio comercial do centro da cidade. "Não tinha nada que me lembrasse o Maranhão. Eu precisava inventar alguma coisa", lembra. Nas idas aos fins de semana ao subúrbio de Bonsucesso, certo dia, ele fez o boi dançar. Pela primeira vez, o samba deu ouvidos às matracas e toadas de Teodoro.
Tempo, tempo...
Em 1961, Teodoro quis mais. Aventurou-se para conhecer a nova capital que acabara de ser inaugurada. Partiu mais uma vez. João, no Rio, começava a mudar a história do carnaval da cidade. Aqui, o homem do bumba meu boi virou contínuo da Universidade de Brasília (UnB). Ficou no ofício quase 30 ano. Lá, o ex-bailarino chegava à Beija-Flor. O maranhense daqui via na televisão que um outro maranhense de nome Joãosinho Trinta arrebentava na Cidade Maravilhosa. Vieram os títulos, as condecorações, a fama internacional. Até príncipe se rendeu a ele. A intelectualidade de nariz empinado teve que mastigar a genialidade do artista popular. Engoliu o preconceito e o chamou, em letras garrafais, de "o mago do carnaval". Foi a redenção do carnavalesco.
Teodoro ouvia falar sobre tudo aquilo. Lia as revistas, via na televisão. E dizia, a si mesmo: "Que homem genial" Caladinho, no cerrado, fazia seu bumba meu boi dançar. Fez nascer uma cultura num lugar quase improvável. Aos poucos, ganhou páginas de jornais. Foi recebido por autoridades. O tempo passou, a vida andou. E o destino, pouco a pouco, iria cruzar o caminho desses dois gênios, sempre perto, mas ao mesmo tempo a anos-luz um do outro. Há dois anos e meio, depois de sofrer dois acidentes vasculares cerebrais (AVCs), que o levaram a uma cadeira de rodas e à paralisação do lado direito do corpo, Joãosinho deixou o Rio de Janeiro.
Veio se tratar no Hospital Sarah do Aparelho Locomotor. Aqui, acolhido por um amigo, decidiu que Brasília seria sua nova e definitiva moradia. "Meu número de sorte é o três", ele diz. E explica: "Tenho Trinta no sobrenome. E amei três cidades: nasci em São Luís, me realizei no Rio de Janeiro e não saio mais de Brasília. Essa cidade aconteceu na minha vida antes mesmo de ser inaugurada".
Arroz de cuxá
O encontro dos dois magos foi comovente. E havia um motivo. Teodoro foi convidar Joãosinho para um grande evento, que acontecerá amanhã e domingo. O Encontro de bumba meu boi em Brasília
(1), em homenagem ao mestre. Elegante, Teodoro não poupou elogios ao amigo que acabara de conhecer: "Ele mudou a história do carnaval do Brasil. Tudo que ele faz é uma contemplação". Joãosinho devolve: "O boi é a perseverança de um folclore verdadeiro, das nossas raízes maranhenses, que felizmente chegou a Brasília e se plantou pela garra e amor de Teodoro, que conhece profundamente aquilo que faz". E enternece a voz: "É um espetáculo belíssimo. Me traz as minhas lembranças da minha infância em São Luís".
Por falar em lembranças, os dois se animam numa conversa de compadre pra lá de gostosa. Teodoro, pai de 18 filhos (11 vivos), flamenguista roxo, diz que sente saudade do peixe cozido e do entardecer na Praça Gonçalves Dias. "Ali, ao lado da Igreja dos Remédios", situa. O botafoguense Joãosinho boceja quando pensa no arroz de cuxá - preparado com uma erva de nome vinagreira e camarão seco - e na torta de camarão. O homem que não teve filhos, mas colecionou vida afora uma legião de afilhados e agregados, vai além: "Como esquecer uma cidade onde as ruas de chamam Rua da Alegria, da Saudade, da Inveja, do Sol, da Paz, Beco do Quebra Pote? Meu Deus, é um fascínio de sobradões cobertos de azulejos"
Teodoro e Joãosinho estiveram pela última vez na ilha há dois anos. O primeiro foi enterrar um parente. "Eu só vou ali pra isso agora", brinca. Pergunto se ele tem medo da morte. Ele responde, sabiamente: "Eu só tenho medo de não ver mais o guarnicê (como chamam a primeira batida) do meu boi. Eu não penso na morte, não. Mas essa infeliz, como é saliente, um dia chega". Joãosinho ri, ri muito. E logo explica o motivo da visita à terra onde nasceu: "Fui ver as minhas duas irmãs, Aldenora e Eulesina, que tão vivinhas da silva".
No fim da entrevista, que durou duas horas, ficaram as impressões dos magos. Sobre Teodoro: "Ele superou minhas expectativas pela inteligência, bom humor. É um homem de ideias. Um raro talento. É de gente assim que o Brasil precisa". Teodoro responde: "Só faltou ele fazer uma coisa: o carnaval da minha verde-e-rosa Mangueira". João se acaba de rir. Mas o homem que há 42 anos faz o bumba meu boi do Maranhão bater matracas, zabumbas e pandeirões na capital da República continua: "Ele (Joãosinho) era igualzinho e simples como via na televisão. Eu sempre quis conhecer ele. É o mágico de todas as artes".
Abraços, apertos de mão, promessas de novos encontros. Planos para o grande carnaval dos 50 anos de Brasília. Emoção sincera de ambos os lados. Atrás dos dois, como testemunha, não estavam as águas da Praia de Ponta d%u2019Areia e suas curvas generosas, com a visão de São Luís antiga ao fundo. Havia o Lago Paranoá e sua beleza, mesmo artificial. Não importa. As águas batizaram esse encontro que demorou uma vida inteira para acontecer. Há tempo certo pra tudo. E o tempo dos dois maranhenses chegou numa tarde seca do cerrado que faz até sonhos virarem realidade.
1 - O evento
Será realizado no Complexo Cultural Funarte. Virão bois famosos do Maranhão e do Piauí e do DF. Entre eles, o Boi de Maioba, Axixá, Imperador da Ilha, Liberdade e o Boizinho Barrica. Além dos bois, também haverá apresentação das famosas danças de Tambor de Crioula e do Cacuriá e o mestre Zé do Pife, de Pernambuco.