Chegaram revistas e livrinhos de histórias onde seres normais se transformam em super-heróis e voam. O projeto é uma parceria da Casa do Saber(1) com a Editora Abril, que renovará o acervo do material a cada dois meses. Naquele lugar distante de tudo, onde computador e mundo digital ainda são coisa do outro mundo, foi dado àquelas crianças o direito de sonhar. E os sonhos têm o tamanho que se possa dar a eles.
Os alunos da 3; série inauguraram a gibiteca. Os olhos, tão surpresos quanto encantados, queriam ver tudo. Pegar, folhear, saborear. Sim, histórias foram feitas também pra isso. Diego Martins, 9, se encantou com a revistinha do herói Ben 10. Quem é Ben 10? Ele me explica, com autoridade de quem sabe o que diz: ;É um super-herói alienígena que usa um relógio e se transforma em dez monstros. Mas tudo do bem;.
Érica Oliveira, 9, ficou encantada. ;Lá em casa não tem gibi. Aqui na escola é único lugar onde posso ler essas revistinhas;, comemora. Ana Kézia, também de 9 anos, agradece: ;Tudo vai mudar agora. A gente pode conhecer outras coisas, ler historinhas diferentes;. Michael Brasileiro, 9, todo falante, explica que aquelas revistas irão ajudá-lo muito no desempenho escolar: ;Acho que vão abrir ainda mais minha cabeça;. Ele é o contador de histórias da turma. Gosta de ler, pesquisar e criar diálogos em suas redações. Tem até diário onde anota todas as situações do cotidiano.
A Escola Classe do Cariru está em festa. E pelo visto não tem data para acabar. A professora Marta Gonçalves dos Santos, 43, é umas das mais animadas com o novo espaço. ;Vai ajudar a abrir a cabecinha das crianças, que quase não têm acesso a diversão por aqui. Será a melhor viagem delas na leitura.; E reflete: ;Quem lê desenvolve o ouvido e a fala;. A diretora Edilene Ferreira de Oliveira, 43, que mora em Planaltina e dirige todos os dias 80km para chegar à zona rural, não esconde a emoção: ;Vejo isso como mais uma possibilidade para nossas crianças crescerem;.
Recursos próprios
Sabendo que a gibiteca um dia chegaria, os próprios professores se cotizaram e compraram revistinhas para os estudantes. A maioria deles nunca tinha tido acesso a uma. Com os alunos da 4; série, desenvolveram trabalhos, interpretação de textos, redações e técnica de linguagem falada e escrita. Foi um show de criatividade. E eles viram que mesmo ali, na zona rural, o poder da imaginação não tem limites. Descobriram talentos. E uma vontade danada de alguns de pegar aquele trem que nunca passará ali.
E a troca é de ambas as partes. E diariamente. Outro dia, Ernesto, cearense de 10 anos, que chega à escola a cavalo e é filho de um agricultor que não teve chance de conhecer as letras, explicava à professora o que é, literalmente, uma vida seca. Ele falou da caatinga, da fome ; dos animais e de gente ; e do sofrimento de um povo. A professora, em lágrimas, entendeu que aquele menino, mesmo sem nunca ter lido tal obra, lhe falava sobre Graciliano Ramos e seu extraordinário livro Vidas secas.
Inauguração
No meio da tarde de ontem, Carmen Gramacho, 64, coordenadora-geral do Projeto Casa do Saber, descerrou a placa de inauguração da gibiteca. Os olhinhos curiosos das crianças ouviam atentamente o que aquela mulher de olhos verdes e sorriso contagiante lhes falava. ;Vocês são merecedores disso tudo. Ler também é diversão. Lendo, cada um terá a chance de criar outras histórias, inventar... Quem sabe vocês não serão escritores no futuro?; A meninada sorriu. Os olhos ficaram ainda mais acesos.
Michael, o escritor-mirim, gostou do que ouviu. Diego viajou ainda mais nas historinhas do imbatível Ben10. E disparou: ;Se eu tivesse os poderes do Ben, ajudaria a salvar o mundo de toda a maldade;. Ana Kézia jurou que vai ler sem parar. Érica vai contar à mãe que ;viajou;, sem sair da escola. Na sala da biblioteca, eles sentam-se no chão. Uns ficam em grupo; outros, mais isolados. Um menininho ri das peraltices do Cascão e sua eterna briga com o banho diário. A menina se diverte com a Mônica. ;Ela é muito engraçada, né?;. A professora se enternece. A diretora acha que está vivendo um sonho.
Na parede da biblioteca, que divide agora o espaço com a gibiteca, o cartaz nunca se fez tão verdadeiro e tão pungente. Nunca é demais repeti-la: ;A leitura é a viagem de quem não pode pegar o trem;. Ele, o trem, nunca apitará naquelas bandas. Pelo menos não num futuro tão próximo. Sem internet, sem mundo digital, sem celular, sem asfalto, sem carros, sem fast food, sem shoppings, sem quase nenhuma modernidade, aquelas crianças encontraram no livros e nas revistinhas a melhor companhia. Decidiram ser amigos. Cúmplices.
Michael coçou as mãos. Ana Kézia deu pulos. Diego vibrou. A cavalo, ainda pela manhã, Ernesto voltou pra casa. Hoje, quando ele chegar, amarrará o animal numa árvore, entrará na escola e conhecerá a gibiteca. Levará um susto. É um novo mundo que se abrirá. Na simpática Escola Classe do Cariru, longe, muito longe daqui, a vida dos alunos tem sido bombardeada. E não poderia haver melhor bombardeio. É aquele que os leva às melhores viagens, ao inusitado, às descobertas mais incríveis, à fantasia cheia de cor, à magia que voa e à comovente capacidade de sonhar. É inacreditável o que uma estante cheia de revistinhas e uma sala repleta de livros podem fazer para sempre na vida de uma pessoa. Que essa história nunca chegue ao último capítulo.
1 - SEM FRONTEIRAS
O projeto, desenvolvido pela Rede Gasol, tem parceria com a Associação dos Bibliotecários de Brasília e a Federação das Associações Comerciais. Em dois anos de existência, já inaugurou 48 bibliotecas nos quatros cantos do DF. Elas estão espalhadas em escolas públicas, organizações não governamentais e no presídio feminino da Colmeia.