Jornal Correio Braziliense

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Moradora da Estrutural luta para garantir sobrevivência da filha

Coragem, determinação e um amor que a tudo ultrapassa. Esses são os ingredientes da história de uma doméstica que se dedica à filha, nascida com sequelas neurológicas graves e irreversíveis

Ela não fez o pré-natal. Foi apenas a uma consulta, logo no começo da gravidez. Nem buscou o resultado dos exames. A caminho estava vindo a terceira filha. O sexo da criança foi revelado ao entrar no oitavo mês de gravidez. Ela juntou todo o dinheiro que tinha, pagou R$ 30 e soube, por meio de um exame de ecografia realizado numa clínica do Conic, que teria uma menina. Ficou matutando o nome. Afinal, já tinha Bruno Vinícius, então com 5 anos, e Kléber Júnior, 2. Aos 29 anos, em 7 de setembro de 2006, Maria das Neves Francisca dos Santos, doméstica de profissão, mineira de Januária, divisa com Bahia, moradora da Estrutural, deu entrada no Hospital Regional de Taguatinga (HRT).

Assim que a nasceu, de parto normal, os médicos logo perceberam que a menina tinha algum problema. Exames específicos não deixaram dúvida quanto ao diagnóstico. No laudo, a sentença: ;A paciente tem toxoplasmose congênita, com graves sequelas neurológicas, atraso no desenvolvimento motor e deficiência visual;. Maria das Neves soube que sua filha havia adquirido a doença dela. Soube mais: se tivesse feito exames e tomado medicação adequada, os efeitos no bebê poderiam até ser menos severos. O chão de Maria das Neves se partiu. E ela se lembrou do pré-natal não feito. E culpou-se por isso. ;Chorei e tive depressão. Mas eu precisava reagir pra cuidar dela;, lembra.

Depois de alguns dias na UTI neonatal do HRT, Melissa Ingrid teve alta. Foi pra casa, um barraco de fundos na Cidade Estrutural. Ali, num só cômodo, iriam morar quatro pessoas: Maria das Neves, um dos seus filhos (o mais velho vive com avó, em Minas Gerais), o atual companheiro e pai de Melissa Ingrid, Evando e a recém-nascida. Começaria a vida da menina que nunca enxergará, andará e falará, e ainda carregará limitações neurológicas pelo resto da vida.

Para deixar o humilde barraco mais ajeitadinho, um jarro com flores de plástico coloridas enfeita o ambiente. Evando, catador do Lixão, trouxe-o dali. Maria das Neves colocou-o numa estante, debaixo da velha televisão em preto-e-branco. Um velho tapete, perto do sofá, decora o local. Sem ter como e com quem deixar a filha, a mãe foi obrigada a parar de trabalhar. Os cuidados com a menina são intensivos e diários. Melissa Ingrid vai, duas vezes por semana, ao Centro de Ensino Especial de Deficientes Visuais (Ceedv), na 612 Sul.

Até chegar ali, Maria das Neves enfrenta dois ônibus, debaixo de sol ou chuva. Melissa Ingrid vai nos braços da mãe. Sai de casa sorridente. Mesmo não enxergando, percebe a movimentação da rua pelo barulho dos carros. Gosta disso. ;Lá, ela tem estimulação precoce e faz atividades na sala de brinquedos;, conta a mãe. Quando não está no Ceedv, Maria das Neves vai a alguma consulta, ora no HRT, ora no Hospital Regional do Guará (HRG). Há 10 dias, por causa de uma convulsão, a menina ficou uma semana internada. A um mês de completar 3 anos, em 7 de setembro, ela mede apenas 78cm e pesa 7kg. Desta vez, ao contrário do aniversário de 2 anos, não terá bolo.

Ratos à noite
O sustento da família vem com o que Evando recicla no Lixão. Agora, também com o salário mínimo a que Melissa Ingrid tem direito, a título de aposentadoria do INSS. Para andar de ônibus, mãe e filha usam o passe livre. O leite e o pão de todo dia chegam por meio de programas do governo. ;É com isso que a gente vive. Fazemos milagre pro dinheiro dar até o fim do mês;, diz Maria das Neves. No almoço de ontem, havia apenas arroz e feijão. A carne acabou. ;Graças a Deus, a gente ainda tem o que comer. Ontem (anteontem), além do arroz e do feijão, ainda tinha salada, macarrão e carne;, agradece.

Manhã de terça-feira. A vida na Cidade Estrutural segue seu curso. Gente nas ruas ; asfaltadas ou não ;, um vaivém de vida, carros velhos, bicicletas, alguma esperança e muita incerteza. Perto do Lixão, a poeira é enorme. Ao menor sinal de vento, mulheres correm para retirar as roupas dos varais e tampar suas panelas. A paisagem é cinzenta. O céu naquele lugar é menos azul. E ao ar, menos respirável.

Melissa Ingrid, de cabelos compridos presos, está na cama. O pai gosta tanto dos cabelos da filha que proibiu Maria das Neves de cortá-los. Ao lado da menina, um rádio toca música. Ela adora ouvir. É o que a acalma. ;Os médicos dizem que ela escuta bem;, comemora a mãe, diante de tantas outras incapacidades definitivas da filha. Enquanto a menina se distrai com o som que chega aos seus ouvidos, a dona da casa prepara o almoço. E ajeita o barraco. Tenta livrá-lo da poeira impiedosa em cima dos poucos móveis. Limpa o jarrinho com flores de plástico, o melhor enfeite daquele barraco. É como se, ao limpá-lo, a vida ali dentro se tornasse menos feia.

;À noite, os ratos não dão sossego. Tem muitos, de todos os tamanhos. Eles vêm do Lixão. Quando a gente vê, eles tão entrando no barraco, passando por cima da gente. Durmo agarrada com a Melissa na mesma cama. Tenho medo de os ratos mexerem com ela. Se ficar junto, parece que eu protejo mais;, conta Maria das Neves. E desabafa: ;Queria muito ir embora daqui, morar noutro canto, numa casa de verdade. Aqui tudo é difícil;.

Sonhos espremidos
Enquanto esse dia não chega, Maria das Neves, aos 32 anos, vive a vida real, sem sonhos ou ilusões. A única que tem. Uma vida inteira espremida ; em espaço, sonhos e perspectivas ; num barraco de um cômodo ao lado do Lixão. Pensa na adolescência nos confins da mineira quase baiana Januária. ;Mais nova, eu era tão magrinha que o povo dizia que eu ia ser modelo. Mas eu sabia que aquilo não era pra mim.; Em vez das passarelas, Maria das Neves veio para Brasília com a missão de cuidar dos filhos e das cozinhas alheias.

Deitada na cama, ouvindo música, Melissa Ingrid sorri. Há um mundo que pertence só a ela. A mãe a pega nos braços. Dá o seio para a filha sugar o leite quase inexistente. Protege-a agora, não dos ratos (eles só aparecem à noite), mas da própria vida. Ciente das irreversíveis sequelas da filha, Maria das Neves admite, com ternura: ;Ela será sempre o meu bebê;.

Kléber Júnior, hoje com 5 anos, inventa uma canção, naquele lugar onde canções quase não têm vez. Quer alegrar a irmãzinha: ;Um passarinho caiu no meio do lago e foi atrás da Melissinha...; Nos braços da mãe, a menina sorri. Maria das Neves acredita que um dia a vida ficará melhor. ;Eu vou à missa e ao culto. Onde tem a palavra de Deus, vou atrás.; Uma vizinha, a recicladora Adriana Lacerda, de 29 anos, seis filhos, revela: ;Ela faz tudo por essa menina. Vive com ela 24 horas nos braços. Eu tenho dó da Maria. É uma lutadora;. Do radinho, anos-luz dali, Melissa Ingrid continua ouvindo sua música. Seu único contato com o mundo.

Do lado de fora do barraco, a poeira da Cidade Estrutural escurece a manhã. Encarde a vida. E espreme a esperança ; dentro ou fora do miserável barraco apertado.

Contaminação
A toxoplasmose é uma doença infecciosa causada por um protozoário chamado Toxoplasma gondii, encontrado na natureza. Pode causar infecção em grande número de mamíferos e pássaros no mundo todo. A infecção nos humanos é assintomática em 80 a 90% dos casos e pode passar despercebida naqueles pacientes cuja imunidade é normal. A forma de contágio mais comum é pela ingestão de cistos presentes em dejetos de animais contaminados, particularmente gatos, que podem estar em qualquer solo onde o animal transita. Outro período particularmente de risco para se adquirir a infecção é durante a vida intrauterina, da gestante para o feto (transmissão vertical). O feto pode ter afetada a sua formação quando contaminado.

Melissa Ingrid precisa com urgência de uma cadeira de rodas. Quem quiser ajudar pode ligar para 8522-9085 e falar com Adelice, prima de Maria das Neves