Jornal Correio Braziliense

Cidades

Entidades incentivam os adolescentes a fazer uma poupança ou os encaminham a uma república

Preocupadas com o futuro dos abrigados, algumas instituições do Distrito Federal trabalham na construção de uma rede de amparo para meninos e meninas que acabam de completar 18 anos. A iniciativa ainda é muito tímida, se comparada ao tamanho do problema, mas pode ser de grande valia para Lucas*. Ele faz aniversário em outubro e já tem uma caderneta de poupança de R$ 5 mil. O adolescente faz estágio no Banco do Brasil e todo o dinheiro recebido vai direto para uma conta bloqueada. Os gestores do Abrigo Casa do Caminho, em Taguatinga, não deixam que ele mexa no dinheiro enquanto estiver abrigado, já que o sustento do garoto é todo mantido pela instituição e pelo Estado. ;Quando eu sair daqui, poderei pagar um aluguel ou os estudos;, planeja.[SAIBAMAIS]

Lucas mora na instituição há cinco anos. Além dele, dois irmãos gêmeos, de 13 anos, estão abrigados lá. Eles perderam pai e mãe para a bebida. ;Primeiro, morreu minha mãe. Foi triste demais. E, dois anos depois, meu pai morreu também;, lembra. A primeira saída da família foi dividir os irmãos. Os mais novos foram para o abrigo e Lucas, para a casa de uma tia. ;Não gostei porque senti muita falta dos meus irmãos e, por isso, saí da casa dela;, afirma. ;Não sei o que vou fazer aos 18 anos, mas sonho em poder cuidar deles (dos irmãos) por conta própria;, acrescenta.

No Lar de São José, desde dezembro, funciona um projeto inédito no Distrito Federal. O Casa Juventude é uma república de ex-abrigados. Um apartamento de dois quartos em Ceilândia serve de moradia transitória para os jovens que acabaram de completar 18 anos. As despesas são divididas entre os garotos e a instituição filantrópica.

Boa convivência

Atualmente, três jovens de 18 anos vivem na república. Dois garotos ocupam um dos quartos e uma garota dorme no outro. ;Eles praticamente não vivem juntos durante o dia porque os três estudam e trabalham, mas a convivência tem sido muito boa;, conta a coordenadora do projeto, Patrícia Moraes. ;Trouxemos essa ideia de um abrigo de Minas Gerais e oferecemos, além de uma ajuda financeira, suporte pedagógico e psicológico;, ressalta. De acordo com Patrícia, a proposta é de que cada jovem possa viver na casa um ano. ;Mas, em caso de não ter para onde ir, o prazo pode ser estendido para três, até que ele possa se estruturar;, garante.

Apesar de contar apenas com três jovens, a primeira república do DF tem capacidade para atender seis jovens, sendo três do sexo feminino e três do sexo masculino, inclusive irmãos. A proposta apresentada é para eles receberem um apartamento mobiliado, custeio do aluguel pelo período de 12 meses, inserção no mercado de trabalho e na rede pública educacional.

Um projeto como esse pode ser a solução para Jaqueline*. A menina tem 16 anos e já está com medo. Ela mora em um abrigo em Taguatinga, há dois anos, e afirma que ainda não está pronta para se virar sozinha. ;Aqui, eles até incentivam a gente a ir e voltar da escola a pé e, de vez em quando, pegar ônibus para ir ao médico. Mas não sei se estou pronta para sobreviver numa cidade deste tamanho sozinha;, diz.

Jaqueline veio de Coromandel (MG) para fazer uma operação na córnea. Já passou pela cirurgia, mas não pensa em voltar mais para casa. ;Estou liberada pelos médicos, mas não vou embora. Aqui é o meu lugar;, garante. Assim como ela, 43 abrigados têm 16 anos.

(*) nomes fictícios em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente

Quatro perguntas para...

Eliana Pedrosa


O governo se prepara para abrir, até o fim do ano, duas repúblicas para jovens abrigados. O anúncio foi pelo pela secretária Eliana Pedrosa, chefe da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (Sedest), em entrevista ao Correio.

Os adolescentes sofrem com a perspectiva de fazer 18 anos. A senhora já sentiu isso nas visitas aos abrigos?
É verdade. Eles têm medo de fazer 18 anos.

E que solução o governo oferece a esses jovens?
Nós procuramos encaixá-los em cursos profissionalizantes. A Sedest trabalha dentro da ótica de encaminhar para cursos.

Mas isso, até hoje, não foi suficiente. A senhora concorda?
Por isso, estamos preparando portaria para criarmos repúblicas. Hoje, a única alternativa dos adolescentes é ir para abrigo de adultos. Queremos fazer uma casa intermediária. No papel, o conceito já foi criado. Agora, estamos fazendo a parte operacional para começar a trabalhar nesse sentido.

E quando seria isso?
Queremos implantar até o fim do ano duas repúblicas. Seria um lugar para morar com supervisão de adultos e com foco no mercado de trabalho. Por exemplo, para ficar na república tem que assumir o compromisso de estudar, ir para curso profissionalizante e, obrigatoriamente, se cadastrar na Agência do Trabalhador.


Palavra de especialista
Modelo é alvo de questionamento


;A questão dos abrigos é tão complexa quanto negligenciada. Todo mundo trata abrigo de forma tão simplória como se fosse mágica resolver o problema. O resultado é a criação de um processo complexo e de difícil resgate pessoal e da individualidade. A sobrevivência de quem passa pelo abrigo é difícil, como ser humano autônomo, sociável.

Do jeito que os abrigos estão concebidos, há uma morte das perspectivas. Abrigo é tão banal quanto complexo. É tão necessário quanto abominável. E nós, especialistas, e os elaboradores das políticas públicas ainda não conseguimos dar resposta para essa juventude.

O principal paradoxo dos abrigos é o fato de tratar todos de forma igual e coletiva em um ambiente social muito individualizado. Somos uma sociedade em que o peso da formação e do sucesso individual é determinante para vida adulta. O modelo do abrigo é extremamente coletivo. Mas não é coletividade de propósito e com objetivo. É circunstancial porque é melhor vestir igual, comer igual, ter o mesmo caderno, ir para mesmo passeio, porque é mais fácil.;

Neide Castanha, secretária executiva do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria)