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Marmelada de Santa Luzia em risco de extinção

Na Cidade Ocidental, doce feito com o marmelo, que chegou a Goiás no século 18, é produzido artesanalmente desde 1945, passando de geração a geração de uma mesma família. Mas sobremesa está nas mãos de apenas 10 produtores

A marmelada de Santa Luzia, centenário doce goiano, está nas mãos de dez produtores locais, a maioria descendente de quilombolas ; escravos que deixavam as fazendas e se uniam nos quilombos. O marmelo chegou a Goiás no fim do século 18 e o doce se popularizou na região. Atualmente, a marmelada é produzida em pequenas fazendas da Cidade Ocidental (GO), na área que já pertenceu ao município de Luziânia. A iguaria está na lista Arca do Gosto, um catálogo mundial de produtos ameaçados de extinção. Pelo menos no Centro-Oeste, só se tem notícia dessa única fonte de produção de uma sobremesa tão artesanal. A receita da marmelada e as plantações da matéria-prima passaram de geração a geração. Os tempos mudaram e nem todos os filhos dos doceiros se interessaram pelo ofício. Aos 49 anos, o agricultor Aleixo Pereira Braga Neto decidiu seguir a tradição da família e plantou 200 pés de marmelo na chácara onde vive, na Cidade Ocidental. Ele trocou a produção de peixes e vegetais pelo cultivo da fruta. Ainda criança, Aleixo observava o pai, Severiano Pereira Braga, 94 anos, mexer a massa caramelada no tacho com uma colher de madeira. Aprendeu o ponto do doce e a feitura das caixas de madeira que conservam a marmelada por até um ano. Dos oito irmãos do agricultor, só mais um se dedica ao marmelo. ;É para não deixar acabar a tradição. Vem do meu bisavô, acho importante continuar;, disse Aleixo. Desde 1945, Severiano faz a colheita do marmelo no mês de janeiro na chácara. Quase todo o trabalho da família se concentra nos primeiros meses do ano, quando os pés estão carregados. ;Se não fizer de uma vez, perde tudo;, ensinou o agricultor. Ele aprendeu a receita ainda menino e garante que nunca mudou nada. ;Desde o meu avô é a mesma marmelada. O tempero dela é só o açúcar;, lembrou. Os próprios clientes pedem para que o doce continue tendo aspecto rústico, por isso a família nem pensa em modernizar a produção. Só por encomenda Severiano cresceu comendo a marmelada de Santa Luzia e aprendeu as melhores formas de provar a iguaria. Ele recomenda o doce com queijo, requeijão, abacate ou batido no liquidificador com leite. ;É uma vitamina muito boa, as crianças ficam fortes. Depois de tomar, você não sente vontade de almoçar nem jantar. É o melhor doce do Brasil!”, ressaltou. A marmelada tem a textura parecida com a da goiabada, mas não é tão açucarada. Severiano só vende por encomenda e a lista de clientes é extensa ; tem gente que compra o doce da família há 70 anos. A produção da marmelada começa com a colheita e limpeza do fruto. O marmelo tem a casca aveludada e os pelos precisam ser retirados com um pano. Sem as sementes, a polpa está pronta para ser limpa, moída e passada na peneira. A polpa lisa vai para o tacho com a calda de açúcar até dar o ponto. A massa resultante segue para as caixas de madeira montadas por seu Severiano. Elas não têm rótulo ; são identificadas pela tradicional embalagem feita em casa. Severiano pesa cada uma e não deixa faltar doce: nem uma sai com menos de 1kg. ;Na hora que fica pronto, já pode cortar. Pode comer até quente;, avisou o agricultor. Os marmeleiros da Cidade Ocidental compraram 2 mil mudas em parceria com a prefeitura em janeiro deste ano para estimular a produção. As plantas vieram de Minas Gerais e devem servir para colheita daqui a quatro anos. Uma nova leva de 4 mil mudas mineiras deve chegar no próximo semestre, quando começarem as chuvas. O marmelo só é plantado no fim de agosto ou começo de setembro. Lavoura ameaçada O presidente da Associação do Produtores Rurais de Xavier, João Antonino de Araújo, chegou à cidade em 1979. ;Quase todos tinham alguns pés no quintal de casa. De uns 30 anos para cá, foi caindo muito a quantidade de pés;, lembrou. Ele acredita que falta incentivo para a continuidade da produção do doce. ;Mas creio que a tendência é de crescer, porque o pessoal vê que a tradição não pode parar. Vamos estimular os descendentes a resgatar a cultura;, comentou. A lavoura é prejudicada por três fatores principais: a falta de cuidados no plantio, a entomosporiose e a demora para a colheita do fruto. Antonino lembra que alguns fazendeiros ainda plantam as mudas da maneira tradicional dos antepassados quilombolas e não se adaptaram às mudanças nas técnicas de agricultura, o que compromete o potencial da planta. O ideal é usar covas de 40 ou 60 centímetros quadrados, adubar e irrigar. Pragas também prejudicam a plantação. A entomosporiose destrói os galhos do pé, mancha as folhas e cria lesões nos frutos. ;Essa doença é responsável pela dizimação de marmelo aqui. A planta é muito resistente e fica com as pontas dos galhos verdes, mas o fungo devasta;, comentou Antonino. Segundo ele, o tempo de espera entre o plantio da muda e a colheita ; de quatro anos ; desanima os donos das terras, que optam por culturas mais rápidas. PARA SABER MAIS Marmelada de Santa Luzia A marmelada é feita com a polpa do marmelo, fruta originária de regiões temperadas. O fruto também é conhecido como pomo dourado e tem alto teor de pectina, substância presente em frutas e muito usada em compotas. As primeiras mudas de marmelo chegaram ao Brasil no século 16. A marmelada foi um dos primeiros produtos de exportação do país, antes até do café. A produção mundial do marmelo está em torno de 380 mil toneladas por ano ; Turquia e China lideram a lista dos principais cultivadores da fruta. A área plantada no Brasil é de 237 hectares, com maior concentração em Minas Gerais. Goiás está em quarto lugar no ranking brasileiro, com 3% da produção. No ano de 1770, o marmelo chegou a Luziânia trazido por boiadeiros de Minas Gerais. O plantio da espécie se intensificou em uma fazenda da região, que hoje faz parte da Cidade Ociental (GO).