Jornal Correio Braziliense

Cidades

Trigêmeos de cores diferentes mudaram a vida de casal

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Quatro anos de namoro e dez de casamento. A vida era uma peleja só para o vendedor de cachorro-quente e a dona de casa. Mas havia um propósito na vida deles: construir a casa própria. Era o sonho do menino que, no interior do Piauí, trabalhou na roça, morava num casebre de taipa e sonhava com a cidade grande. Um dia, ele e toda a família ; pai, mãe e cinco irmãos ; desembarcaram em Brasília. Sacolejaram três dias e três noites dentro de um ônibus até chegar à capital. O menino tinha 14 anos. Aqui, virou ajudante de pedreiro. Encheu mais ainda as mãos de calos. À noite, ia para o colégio. Estava atrasado, mas não desistiu. Nem se incomodou em ser o mais velho da 8ª série. E foi na sala de aula, em Taguatinga, que o ajudante de pedreiro conheceu a futura mulher. Ele tinha 18 anos. Ela, 14. Começa aqui a história de Raimundo Nonato de Brito Cerqueira (alguém ainda dúvida que, com esse nome, ele não seria piauiense?) e Patrícia Araújo Sardinha, brasiliense, nascida num hospital público do Plano Piloto. Eles nem imaginavam que o namoro, no começo escondido, mudaria para sempre a vida deles. ;A gente começou a namorar no dia 23 de novembro de 1995;, ele lembra. Ela confirma. Quatro anos depois dos primeiros beijos escondidos, das aulas cabuladas, o casamento. Patrícia completara 18 anos. Raimundo Nonato, 22. E decidiram que filhos só depois que tivessem onde morar. ;No dia do casamento, eu não tinha dinheiro nem pro corte do meu cabelo;, ele conta. Durante os quatro primeiros anos de casamento, a casa do pai de Patrícia foi o endereço do casal. Raimundo Nonato trabalhou como artesão e depois arrumou o primeiro emprego com carteira assinada. ;Fui fichado como motorista de uma empresa.; A vida começava a sorrir para o menino criado na roça. Para evitar filho, a camisinha foi a salvação. Patrícia não se adaptou aos anticoncepcionais. ;Passava muito mal e engordei bastante;, ela diz. De camisinha em camisinha (sem que umazinha estourasse), os anos se passaram. Nada de filhos. Raimundo Nonato decidiu ser autônomo. Virou vendedor de cachorro-quente. Patrícia o acompanhava na empreitada. Onde havia um evento ; shows, festas, aniversário de Brasília ; lá estava a dupla. Sempre a dupla. Vararam madrugadas. Todo o dinheirinho que sobrava era poupado. ;A gente tinha um só objetivo: comprar um lote;, ele conta. Depois de muitos, milhares de cachorros-quentes e alguns anos empurrando aquela carrocinha, finalmente juntaram o dinheiro para a compra do lote. O endereço? No Recanto das Emas. Raimundo Nonato ergueu ali uma casinha. Moraram apenas 30 dias. Patrícia não se adaptou ao lugar. O casal vendeu o lote do Recanto e comprou outro, em Samambaia. Voltaram para a casa do pai de Patrícia, enquanto erguiam a nova casa. E mais cachorros-quentes. E novamente ele, Raimundo Nonato, o faz-tudo, virou pedreiro. Em 30 dias, a casinha, apenas habitável, nadica de luxo, estava pronta. Mudaram-se. Mas ele, o menino que cresceu capinando roças alheias, queria mais. Em alguns anos, a casinha simples virou um sobrado de três andares. Na parte de baixo, moravam ele e a mulher. Os dois outros andares viraram aluguel. E assim, juntando o dinheiro dos inquilinos e do cachorro-quente, Raimundo Nonato construiu mais duas casas, ali mesmo, no mesmo lote de esquina. Destino delas? Aluguel. A vida, finalmente, parecia andar a passos mansos. Surpresa geral Dez anos de casamento, muita peleja e muito trabalho. Era hora de pensar em filhos. Patrícia sonhou com a gravidez. Raimundo Nonato abandonou a camisinha. Um ano de tentativas. Nada. O casal foi a um posto de saúde, em Samambaia. ;Depois de um exame, o médico me disse que eu tinha ovário policístico e nunca poderia engravidar;, ela conta. Eles não desistiram. Procuraram um hospital particular, em Taguatinga. Lá, o ginecologista não concordou com o laudo do colega. E lhes disse: ;Não tem lógica. Você ovula normalmente. Pode, sim, ter filhos;. Pensaram que o problema, então, seria com Raimundo Nonato. E lá se foi o faz-tudo se submeter a exames de espermograma. Resultado: tudo normal. O piauiense estava apto a ser pai. Voltaram para Patrícia. Ela precisa, então, tomar remédios para tratar o ovário policístico. Apenas isso. Sem intervenção cirúrgica, sem inseminação, sem marabalismos, seis meses depois, Patrícia engravidou. Numa ecografia, ela quase desmaiou. Dentro de sua barriga havia três bebês. ;Eu não sabia se chorava ou ria;, ela admite. Raimundo Nonato suou frio. Três meses depois, numa ultrassonografia, a revelação: eram dois meninos, na mesma placenta (univitelinos), e uma menina, em outra. A barriga de Patrícia crescia a olhos vistos. Perto do oitavo mês, ela não conseguia mais andar nem respirar. Num exame de rotina, o médico detectou que um dos meninos estava quase sem líquido amniótico (que envolve o embrião). Era necessária uma cesariana de emergência. Levaram-na para o Hospital Regional de Taguatinga (HRT). Nasciam Arthur, com 45cm e 2,3kg; Caio, com 44cm e 1,9kg, e Letícia, a maiorzinha, com 46cm e 2,2kg. Arthur, que estava em sofrimento ainda na barriga da mãe, foi para a UTI neonatal do Hospital Regional da Asa Norte (Hran). Danadinho que era, só ficou ali por 24 horas. Enormes diferenças Patrícia não conseguiu amamentar os trigêmeos. Não tinha leite suficiente. Durante os dez dias que ficaram no hospital, os bebês tomaram leite em copinho, do banco de leite. E voltaram para casa. Alegria na rua. Todo mundo queria conhecer Arthur, Caio e Letícia. A vida virou do avesso naquela casa de paredes verdes. Haja cachorro-quente para dar conta. Uma lata de leite por dia. Fraldas? 720 por mês. Seis banhos diários. Nunca mais Patrícia dormiu uma noite inteira. Aliás, nunca mais cochilou pelo menos por duas horas sem interrupção. Nem Raimundo Nonato. ;A gente não tava preparado pra tanta mudança na nossa vida;, confessa a mãe. Desde que os filhos nasceram, os pais logo perceberam que Arthur e Caio eram mais clarinhos que Letícia. Pensavam que, com o tempo, a diferença fosse desaparecer. Ledo engano. Perto dos três meses, as diferenças ficaram mais evidentes. Arthur e Caio tornavam-se cada vez mais loiros. Os olhos, mais azuis. Os cabelos de Letícia, a moreninha, enrolavam também cada vez mais. Segundo especialistas, casos de gêmeos e trigêmeos de cores diferentes são raros, gerados a partir de embriões e espermatozoides diferentes. A proporção é de um em um milhão. O povo da rua fazia romaria para ver os trigêmeos. Virou notícia na cidade. Raimundo Nonato teve que enfrentar as piadas dos amigos. Patrícia tem que explicar e provar que os três nasceram da mesma gestação. Mas o povo duvida. Indaga até hoje. ;Meu pai é loiro e meus tios são todos galegos dos olhos azuis;, apressa-se em explicar o pai. A mãe, que é morena como Letícia, surpreendia-se a cada dia por ter dois filhos ;galeguinhos dos olhos azuis;. A vida andou. Os três cresceram. Completaram um ano em 11 de abril. Caio é o mais danadinho. Bagunceiro, manda e desmanda. Quando ainda era muito bebê, teve quatro pneumonias. Sarou total. Hoje, nem gripe pega. Vasectomia Arthur é o mais chorão. ;Uma irmã minha (tia) acostumou ele a ficar no colo. Agora, só quer ficar assim;, justifica a mãe, exausta e com olheiras provocadas pelas noites insones. Letícia é a ;traquilona; da turma. A mais gordinha. Quando ouve música, começa a dançar. Não dispensa biscoito. Aprendeu a andar antes de todos eles. Esperta, diz algumas palavras: ;pai; e ;dá;. E já tem quatro dentinhos ; dois superiores e dois inferiores. Arthur tem três. E Caio, dois. ;Eles não param um minuto. Quando um chora, os outros acompanham;, entrega o pai, igualmente cansado. O banho? Uma maratona. Pai e mãe, juntos, se revezam na tarefa. Às vezes, é preciso da ajuda de uma tia materna. Na hora da mamadeira, a mesma coisa. Antes do casamento, Patrícia sonhava ser veterinária. Raimundo Nonato, engenheiro civil. Os sonhos foram adiados por tempo indeterminado. ;Nosso futuro é com a vida deles. O estudo agora é deles. Vou vender mais cachorro-quente pra dar a melhor educação que puder;, planeja o pai. A mãe acompanha: ;Tudo é pra eles. Nosso amor é incondicional;. E assim, numa casa de esquina pintada de verde, três crianças que demoraram uma década para chegar mudaram a rotina de um homem e uma mulher. Dois galeguinhos e uma moreninha. É uma turminha da pesada, em todos os sentidos. Em tempo: com medo de mais surpresas, Raimundo Nonato tratou imediatamente de fazer uma vasectomia. ;Eu, arriscar de novo? Meu Deus do céu!”, arrepia-se. Cabra previdente, esse piauiense!