Na novela A Favorita, ele encarnou Mr. Johnson, um americano que vendeu uma empresa de papéís falida, operação que era parte de mais um golpe da tresloucada vilã Flora (Patrícia Pillar). Com a desequilibrada, passariam a perna em Gonçalo (Mauro Mendonça) e formariam um par perfeito no trambique. Conseguiram. Na minissérie Amazônia, era um senador americano para o qual Chico Mendes foi pedir ajuda na causa dos seringueiros. Mais recentemente, em Caminho das Índias, fez uma participação como um agente da Interpol, uma agência de polícia internacional mantida por 187 países, que veio ao Brasil atrás dos passos da diabólica Ivone (Letícia Sabatella). Pelo porte físico ; alto, branco, olhos azuis, cabelos loiros ; é sempre chamado para os papéis de gringo em novelas ou minisséries da Rede Globo.
Ele nasceu para atuar. Vive da sua arte. É ator, autor, diretor e bailarino. Tem 41 anos, é solteiro, sem filhos, fala inglês com fluência. Um currículo extenso. Mora de verdade em Brasília. Vai ao Beirute. Formou-se em Artes Cênicas, na Universidade de Brasília. Vive com a mãe, num apartamento espaçoso da 309 Sul. Em 15 dias, viajará para o Japão, onde filmará AUN, longa metragem do cineasta austríaco Edgar Honetschläger. A vida de William Magalhães Ferreira é uma loucura. Vira e mexe, está representando, seja na televisão ou no teatro.
Mas a história exclusiva que o Correio conta hoje está longe da ficção a que o ator se acostumou a representar. É a história mais pungente de sua vida. A que nunca foi contada. A que não está nos palcos. Em setembro do ano passado, William conheceu uma parte dele que sempre soube existir, mas lhe faltava ver, tocar, sentir o cheiro. Pegou um avião e desembarcou bem longe daqui, na Escócia, terra onde vive sua família biológica. Invertendo o caminho, pelo qual casais estrangeiros vêm ao Brasil para adotar crianças daqui, William foi adotado no País de Gales, por um casal de brasileiros.
Voltemos ao começo desta história, antes mesmo de William nascer. Era 1964. Um jovem casal, então com quatro anos de união, deixa o Brasil. José Carlos Dias Ferreira, 33, mineiro, médico anestesiologista, fora fazer especialização na Inglaterra. Nelma Magalhães Dias Ferreira, 32, alagoana criada em Minas, formada em letras pela Universidade de Minas Gerais, acompanhou o marido. Pararam em Londres. Sem filhos, ela sempre desejou tê-los. ;Nunca evitei, mas eles não vinham;, ela conta.
Seis meses depois da estada em Londres, José Carlos arrumou um emprego no País de Gales, na capital Cardiff. Lá, ele e a mulher levavam suas vidas. Os filhos biológicos não vinham. José Carlos exercia a medicina com dedicação extremada. Nelma declamava poesias para estudantes britânicos que estudavam português, com sotaque lusitano, na Universidade do País de Gales.
Ainda em Cardiff, Nelma e José Carlos souberam que numa instituição católica se adotavam crianças. Mas as exigências eram severas, sobretudo para estrangeiros. O casal se candidatou. ;Foi um ano de espera;, diz Nelma. E um dia lhe disseram: ;Menina demora mais;.
Assistentes sociais da entidade começaram a fazer visitas à casa de Nelma e José Carlos. Quiserem ver fotos do Brasil. Perguntaram-lhe os costumes do país. E lhes pediram duas referências. ;Sou católica e devota de Nossa Senhora. No Brasil, pedimos referência pra Dom José Newton (que foi arcebispo de Brasília). Ele mandou uma carta em latim à instituição. E na Inglaterra, ao anestesiologista e professor William Muslien, um renomado médico do país e amigo do José Carlos;, conta Nelma.
Santo Antônio
Em 15 de agosto de 1967, na cidadezinha de Newport, perto de Cardiff, nasceu um bebê carequinha, de olhos acesos e bem azuis. A mãe, então com 19 anos, devota de Santo Antônio, lhe deu o nome de Antony. Ainda grávida, ela fora abandonada pelo namorado, um rapaz que conheceu na fábrica onde os dois trabalhavam.
Muito nova e sem condições de criar o filho, a escocesa Kathleen Elder foi aconselhada pelos parentes a deixar o bebê para adoção. Assim o fez. Com seis semanas de vida, Antony foi levado à instituição. Para que não criasse vínculos com o filho, a mãe não pôde amamentá-lo. Um telefonema avisou Nelma e José Carlos que havia uma criança pronta pra ser adotada. No dia seguinte, numa escola de freiras, o casal foi, enfim, conhecer o filho tão esperado. Extasiados, levaram para casa aquele menininho com roupa azul e uma medalha de Santo Antônio. ;Era o meu filho;, emociona-se Nelma.
Pai e mãe adotivos tiveram que frequentar aulas num centro onde receberam orientação de como alimentar a criança, educar e até os brinquedos que o bebê poderia ter. Em homenagem ao médico amigo, sem saber que o filho se chamava Antony (o processo de adoção correu sob sigilo absoluto ; nenhuma das partes teve acesso à outra), o casal lhe deu o nome de William. Seis meses depois de levá-lo para casa, os pais foram chamados à Corte Britânica para legalizar a adoção.
Outro continente
Em 1968, o casal retornou ao Brasil. William tinha 1 ano e dois meses e dupla nacionalidade: britânica e brasileira. Entendia mais inglês do que português. Aos cinco anos, o menino dos cabelos da cor de sol soube que era filho adotivo. ;Dissemos a ele que tinha nascido do coração;, diz Nelma. Na escola, o danadinho repetia aos amigos: ;Fui adotado na Inglaterra;. O casal adotou, em Alagoas, mais um menino. Gustavo Alexandre tinha 2 anos quando chegou à família. Hoje, aos 43, é fotógrafo, casado, com filhos. É o irmão de William.
Passaram-se muitos anos. William morou fora de Brasília. Viveu temporadas no Rio de Janeiro e em Portugal. Exerceu o ofício de representar cada vez mais apaixonado. No ano passado, como se fosse uma dessas novelas das quais participa, recebeu em casa uma carta de uma agência de intermediação britânica. Em 1973, de acordo com as leis daquele país, filhos adotados podiam procurar os pais biológicos. Em 2000, mais uma mudança na lei. Mães, por meio de uma agência de intermediação, se quisessem, poderiam buscar o paradeiro dos filhos. Kathleen procurou pelo seu Antony. E o achou.
William ficou balançado. ;Sempre quis saber a origem da minha história. Ver gente que fosse parecida comigo fisicamente;, ele diz, com uma timidez impressionante. Pergunto se atores são tímidos, de verdade. ;Eu sou e muito;, ele responde, quase sem encarar o interlocutor. E admite: ;Quando recebi a carta, fiquei abalado, muito mexido;. Nelma, hoje com 74 anos, e José Carlos, 75, hoje divorciados, incentivaram o filho a ter contato com a mãe biológica. ;Eu achei esse encontro uma graça de Deus. Meu filho sempre quis saber a história dele. E nem eu sabia contar o começo;, reconhece a doce Nelma, com cara, voz e jeito de mãe que cuida.
Vieram os primeiros contatos por e-mail. Pelo computador, o ator começou a saber da sua vida. Depois, as conversas pelo MSN (bate-papo na internet). William soube que sua mãe havia se casado e tido mais duas filhas ; Claire, 39, e Angie, 34, ambas enfermeiras. Soube que tinha sobrinhos. Que tinha um tio que era a cópia dele, até no andar. E uma tia artista plástica e que não tinha mais avós maternos.
Acalmada no peito
Em setembro de 2008, William embarcou para a Escócia, onde conheceu a família inteira. Kathleen, a mãe, hoje com 62 anos, lhe pediu perdão por tê-lo entregado à adoção. Mostrou-lhe a música que ouvia quando dentro de sua barriga ele crescia. ;Ela se sente culpada, com remorso por ter me dado;, constata William. Ela o chamou de ;Baby Antony;. Ele a chamou de ;Mommy; (mãe em inglês). Na despedida, duas semanas depois, choro de todos. ;Eu não aguentei;, diz, envergonhado. E revela: ;Ir serviu para reafirmar o meu sentimento, o amor que sinto pela minha mãe (refere-se à Nelma);.
Há um mês, a irmã mais velha de William, Claire, retribuiu a visita. Ficou na casa do irmão. Ele lhe mostrou Brasília. Ela se encantou com a terra de JK. Ele a levou à Bahia. Ela adorou camarão. Viraram irmãos de verdade. Claire passou a chamar Nelma de ;mãe;. ;Eu acabei ganhando mais duas filhas e netos;, encanta-se a mãe de William. Na tarde de ontem, sentado no sofá ao lado de Nelma, William confessou: ;Reencontrar minha família biológica me deu uma acalmada no peito. Uma sensação de alívio nessa procura, nessa divagação;. Em tempo: sem saber que a mãe biológica de seu filho era devota de Santo Antônio e muito menos que o nome dele um dia teria sido Antony, Nelma lhe deu, quando era adolescente, uma medalha do santo.
Ela ficou no pescoço de William até que ele a perdesse, em 2001. ;Foi nesse mesmo ano que minha mãe biológica contou pras filhas sobre a minha existência. Minha irmã Claire foi a Pádua, na Itália (terra onde morreu Santo Antônio), e escreveu no livro de milagres que queria um dia me conhecer. Esse dia aconteceu;, ele relata. Se a história de William não fosse verdade, daria um belo enredo de uma próxima novela dessas que frequentemente o ator participa. Escancaradamente, é a vida imitando a arte.