A menina agitada e brincalhona de repente mudou. Luana, 4 anos, parecia indiferente e cansada. Um dia desmaiou e foi levada às pressas para o Hospital Regional da Asa Norte (Hran). Quando a mãe, Eliane Virgens dos Santos, 21 anos, recebeu o resultado do exame de sangue da menina, levou um susto. ;Ela sempre comeu feijão, carne, vegetais, biscoitos. Não imaginei que pudesse ter anemia.; O tratamento já dura três meses. Luana toma medicamento para se recuperar da queda das taxas de ferro no sangue.
A anemia é um problema de saúde pública tão grave no Brasil que, em 2002, o Ministério da Saúde, em parceria com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), tornou obrigatória a adição de ferro e ácido fólico à farinha de trigo, fubá e flocos de milho. De acordo com a Resolução nº 344/02, os fabricantes deveriam acrescentar a esses produtos 4,2 miligramas de ferro e 150 microgramas de ácido fólico, no mínimo. Até hoje, o Ministério da Saúde não tem pesquisa sobre a prevalência de anemia entre a população. Mas estudos isolados apontam que, em algumas regiões, 50% das crianças menores de cinco anos são vítimas da doença. Entres as mulheres grávidas, o índice é de 30%.
Passados seis anos da obrigatoriedade de fortificação das farinhas, a pesquisadora Juliana Frossard, da Universidade de Brasília (UnB), faz um alerta: a legislação criada para resolver um problema pode causar danos à saúde de outra parcela da população que, naturalmente, tem a dieta rica em ferro. É o que revelou o estudo com 134 moradores de São Sebastião e Sobradinho. Parte do grupo que tinha quantidade elevada de ferro no organismo apresentava mais danos nos lipídeos e proteínas. ;O excesso de ferro potencializa a produção de radicais livres, que, por sua vez, atacam os lipídeos e as proteínas, modificando a sua estrutura e fazendo com que eles percam as suas funções;, explicou Juliana.
As consequências dos danos a estas estruturas, segundo a pesquisadora, são o desencadeamento de doenças crônicas, entre elas problemas cardiovasculares, câncer, mal de Parkinson e Alzheimer. ;Estudos no Japão, Europa e Estados Unidos também apontam a relação entre o surgimento dessas doenças e o excesso de ferro no organismo;, completou. A população e a cidade estudadas foram escolhidas por sorteio.
Segundo Juliana, a renda de 68% dos entrevistados era inferior a um salário mínimo (R$ 465) por mês por pessoa. E a dieta era composta basicamente por pão, arroz, feijão e carne, distribuída entre café da manhã, almoço e jantar. ;Por isso, acredito que a situação seja ainda mais preocupante. Se em famílias de baixa renda familiar e alimentação simples como essa tivemos esse resultado, como seria se a análise tivesse como alvo a parcela da população com dieta rica em carnes, verduras, leite e derivados, castanhas e alimentos fortificados?;, questionou.
Limites
Para a pesquisadora, o resultado dos estudos revela a necessidade de se criar uma política direcionada para o combate à anemia entre a parcela da população com carência de ferro. ;Não se pode tratar esse tema de forma generalizada. E é preciso limitar a quantidade de adição de ferro e ácido fólico à farinha de trigo e ao fubá. Alguns fabricantes colocam mais que o dobro do mínimo para garantir que até o fim do prazo de validade o produto mantenha o ferro e ácido fólico exigidos por lei;, alertou.
Em quatro situações, o bioquímico Antônio Araújo, 49 anos, constatou por meio de exame de sangue que estava com quantidade excessiva de ferro no organismo. ;Foram eventos esporádicos. Mas quando isso ocorre, evito comer carne vermelha e vegetais escuros, principais fontes do ferro;, contou. No fim do ano passado, Araújo fez um hemograma para a realização de uma cirurgia no pé. ;O exame estava tão alterado que os médicos descartaram a necessidade de transfusão de sangue após a cirurgia.;
Conselheira do Conselho Federal de Nutricionistas (CNF) e professora da Universidade Federal de Pernambuco, Ana Célia Oliveira dos Santos disse que no Brasil casos como o do bioquímico são raros. O mais comum, especialmente no Norte e Nordeste, é encontrar pessoas com carência de ferro no organismo. Defensora da política de fortalecimento das farinhas, ela concorda que é preciso adaptar a legislação fixando o máximo permitido. ;Mas a própria tecnologia acaba limitando porque, em grande quantidade, o ferro e ácido fólico podem alterar o sabor do alimento. Também é certo que nem todo ferro ingerido é absorvido;, ponderou.
Ana Célia lembrou ainda que o ferro foi um dos primeiros elementos reconhecidos como essenciais à vida, pois está relacionado a todos os processos celulares que envolvem o oxigênio, seja para o transporte e armazenamento ou para a produção de energia pela célula. A professora reforçou que a carência de ferro no Brasil ainda é muito comum. E que a anemia ferropriva é a principal carência nutricional no mundo.
;Aqui no Nordeste, temos esta condição com alta prevalência. Um estudo com crianças da Zona da Mata de Pernambuco em 2004 revelou que 73,2% delas apresentavam carência de ferro aos 12 meses de idade. Um trabalho mais recente publicado em 2008, também com crianças, encontrou prevalência de 46,9% de anemia por carência de ferro;, citou. A carência desse elemento dificulta a produção de energia. Por isso, a primeira manifestação da anemia é o cansaço, a fadiga. A carência também compromete a imunidade e o desenvolvimento cognitivo.
Desequilíbrio pode afetar o fígado
A principal causa de anemia em crianças é a alimentação incorreta. Por isso, explica o hematologista do Hran Tokudi Moezoe, além do ferro é necessária a ingestão de vitamina C, responsável por auxiliar na absorção do nutriente. ;Se houver a deficiência dessas substâncias, e carência de ácido fólico, o amadurecimento dos neurônios pode ser comprometido, além de outras consequências;, explicou Moezoe. Em relação aos adultos, Lídia Abdalla, gestora técnica de um laboratório, acrescenta que as taxas de ferro podem ser diminuídas por doenças que causem hemorragias frequentes e pela presença de miomas (em mulheres).
;O ferro, ingerido em grandes quantidades, é tóxico. Interfere nas reações de geração de energia nas células;, esclarece o hematologista Moezoe. De acordo com ele, o acúmulo do elemento no organismo não tem sintomas aparentes e ocorre com mais frequência nos homens. ;As mulheres, por conta da menstruação, mantêm níveis mais baixos.; A principal consequência do excesso do nutriente, segundo ele, é a sobrecarga do fígado. ;Em situações prolongadas, pode ocorrer cirrose e degeneração do órgão;, explicou.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que a fortificação das farinhas de trigo e milho no Brasil foi proposta em decorrência da necessidade de reduzir a prevalência de anemia por deficiência de ferro, um grave problema de saúde pública. E que foi considerada a segurança de uso pela população, dentro do limite de ingestão diária desses micronutrientes. Uma das etapas dessa ação é o monitoramento das farinhas para verificar a adequação da quantidade à legislação vigente.
Ainda de acordo com a Anvisa, ao longo da implementação dessa estratégia, verificou-se a necessidade de revisar a Resolução nº 344/2002, com o estabelecimento dos limites máximos. Esta discussão está em andamento, envolvendo o Departamento de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde e a própria Anvisa.