Jornal Correio Braziliense

Cidades

Condomínios familiares renovam o estilo de morar em Brasília

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Quem não se diverte em uma noite de Natal em família? Aquele único dia do ano em que todos conseguem se reunir, sem furos ou desculpas e, juntos, falar alto, se meter na vida um do outro, comer bem, rir muito, fofocar e matar a saudade. Agora imagine se a farra de uma noite de Natal perdurasse por anos e anos? Você aguentaria? Pois muitas famílias do Distrito Federal não só toleram como adoram esse convívio. Vivem em condomínios familiares, onde a vizinhança é composta por pais, cunhados, sogras, primos, irmãos, filhos e netos, numa dinâmica que reproduz o comportamento das abelhas: a colmeia é de todos, mas cada um tem seu espaço. Eles garantem que a proximidade é um privilégio e que existe, sim, muita privacidade numa vizinhança familiar. A Revista conversou com algumas dessas famílias. Entre histórias curiosas e engraçadas, todos admitem uma certa intromissão na vida um do outro, mas o que predomina é o respeito e a cumplicidade. A casa das 17 mulheres Basta chegar ao condomínio onde moram a empresária Maria de Araújo Barreto, 79 anos, e suas seis filhas, duas sobrinhas, seis genros e 17 netos, para se ter uma boa ideia do clima da família. Lá, cada casa foi pintada com uma cor alegre e extravagante: rosa, verde-bandeira, laranja, amarelo e azul-royal. E se a primeira impressão é a que fica, a segunda só confirma o fato. O local é agitado e barulhento, no melhor sentido de ambas as palavras. É menino correndo para todo lado, brincando na piscina, subindo nos brinquedos do parquinho, garotas conversando, casais de namorados. Mas o que prevalece são as vozes femininas das 17 mulheres que mandam e desmandam em tudo e estão sempre inventando moda: uma festa hoje, um almoço amanhã, um filme na casa de alguém de noite ou um papo a qualquer hora no que chamam de ;central da fofoca; ; dois sofazinhos que ficam na frente da casa alaranjada da matriarca. Ponto de encontro delas. E não basta morar uma ao lado da outra. Maria de Araújo, que prefere ser chamada de dona Lica, trabalha com as seis filhas na escola que fundaram em 1986. Nem nas viagens de férias elas querem ficar sós. De dois em dois anos, a família inteira aluga um ônibus e vai para algum canto do país. Essa é basicamente a única lei dentro do condomínio, conhecido como Sete Estrelas. Fora isso, elas afirmam que a regra é ser feliz. ;Aqui cada um tem seu espaço, mas todos são bem-vindos. Entro e saio da casa das minhas irmãs o tempo todo;, conta Mariléia Barreto, dona da casa verde e filha mais velha de dona Lica. Essa mania de entra-e-sai da família, garantem os mais novos, cria uma certa dose de intromissão que os adultos, às gargalhadas, negam até o fim. ;Aqui a privacidade é total. Temos lá nossa central de fofoca, mas não nos metemos na vida de ninguém;, diz Marilene, irmã de Mariléia. Os jovens retrucam no ato. ;Ah é, tá bom! Aqui elas controlam a gente, não deixam sair com namorado nem chegar tarde;, brinca Nayane Barreto, 18 anos. Os homens, minoria da casa, afirmam que apesar da agitação constante é um barato estar cercado de mulheres. ;Elas são muito animadas. O único problema é a enrolação. Se combinamos alguma coisa, elas atrasam umas duas horas pelo menos;, reclama Sérgio Pessoa, servidor público e marido de Mariléia. Não é para menos. São tantos guarda-roupas femininos que elas ficam desconcertadas. ;Todo mundo pega roupa, sapato e bolsa emprestado. É uma farra. Mas tem que devolver. Que nem com comida, pegou alguma coisa de que precisa, tem que devolver depois;, ressalta a estudante Mayara Barreto, 18. Dona Lica acha todo esse troca-troca engraçado e diz que o condomínio é fruto de sua vontade de ter as filhas sempre por perto. ;Gosto de poder vigiar, orientar e ensinar sobre a vida;, admite. Organizar para viver bem À primeira vista, o condomínio da família Pacheco é um local calmo e muito organizado. A grama perfeitamente cortada, as árvores podadas, a piscina limpa e as casas ; três do lado esquerdo e outras três do lado direito do terreno de 26 mil metros quadrados ; muito bem cuidadas e projetadas. E não é apenas a aparência. O patriarca e sua mulher, quatro filhos e uma nora (cada um em uma das seis casas), além dos netos, vivem em família, mas usam a lógica de um condomínio comum: síndico, contas divididas, normas, regras e reuniões. Mas basta ficar poucos minutos conversando com alguns dos 20 moradores do local que logo se vê que é a bagunça de se conviver o tempo todo com os irmãos, sobrinhos, tios, pais, avós, cunhados, sogras e afins que predomina. Na sala, reunidos, eles não conseguem parar de falar. A justificativa é compreensível. Por serem vizinhos não marcam compromissos uns com os outros, pois contam sempre com a possibilidade de se encontrar pelo condomínio. Mas raramente se esbarram. Então, quando acontece uma reunião ; na maioria das vezes em almoços de domingo ou em alguma das inúmeras festas que promovem ; é assim. Têm pressa para colocar o papo em dia e matar a saudade. Não é à toa que, há alguns anos, Alexandre Pacheco, 16, um dos rapazes de lá, fundou o jornalzinho Folha do Condomínio, no qual, de 15 em 15 dias, escrevia sobre a vida dos familiares e suas viagens, promoções no trabalho, notas da escola, namoros e, claro, caçoava quando o time dos tios e primos ia mal nos campeonatos de futebol. ;Às vezes eu lia no jornal que meu irmão tinha viajado, e eu nem estava sabendo;, lembra a médica Andréa Pacheco, 47 anos. Participação mirim Nesse ritmo, as crianças do condomínio também incorporam a organização. Já criaram um condomínio infantil, no qual, de terno e gravata, faziam reuniões para decidir quais melhorias queriam reivindicar. Certa vez, pediram a construção de uma quadra de tênis e de um garrafão de basquete. Mas o preço alto fez com que os adultos negassem o pedido. Os meninos resolveram então que pagariam pela construção da sonhada quadra. Saíram pelo condomínio distribuindo panfletos escritos a lápis e em papel de caderno: ;Lava-se carros com esponja macia e sabão de primeira qualidade;. Eles também vendiam todos os tipos de coisas em cestas e se ofereciam para engraxar sapatos. A quadra não chegou a ser construída, mas o esforço dos meninos sempre é lembrado com muitos risos. O novo projeto juvenil é juntar dinheiro para construir um estúdio de música. Agora, a reivindicação vem dos adultos: ;Só se tiver isolamento acústico;, grita um. Outra história engraçada foi protagonizada por Leonardo Pacheco, hoje com 10 anos. Aos 6 anos, ele saiu de casa em casa pedindo potes de palmito. Todos julgaram que era um empréstimo à mãe. Na verdade, Léo era fã de palmito e acabou, em um único dia, comendo o palmito de todas casas. A situação virou piada entre eles, mas para evitar os empréstimos descontrolados, eles anotam o que cada um pega. ;Na minha casa tem até uma listinha na geladeira de tudo que vai ou entra da casa dos vizinhos;, conta Andréa. O fundador do local, pai, avô e sogro dos demais moradores, não esconde a alegria e orgulho de presenciar a família relembrar as histórias. ;É um sonho realizado;, sintetiza Ary. Um condomínio como outro qualquer Incentivado pela primeira mulher e mãe de seus seis filhos, Ary Pacheco, 80 anos, adquiriu em 1987 um terreno para que todos pudessem morar juntos. Quando se mudaram, em 1991, decidiram fazer as coisas de forma organizada: uma central única de telefone, para que possam ligar uns para os outros de graça, rede de computadores integrada e segurança 24 horas. Já teve até um motorista contratado para levar e buscar a criançada na escola e cursinhos. Tanta organização, eles ressaltam, ajuda na convivência e não exclui a diversão e descontração em família. Mas até quando o assunto é comemoração eles fazem de forma ordenada. O espaço de lazer, por exemplo, só pode ser usado para festas promovidas por familiares. Jamais é emprestado para festas de amigos e afins. Além disso, quem quiser usar o salão de festas tem de fazer uma reserva prévia pela internet. Como nossos pais A história é mais ou menos assim: o empresário libânes Kammel Abdulhak, 77 anos, e o irmão Youssef Abdulhak, 74, vieram para o Brasil quando novos, depois que o pai morreu no Líbano durante a guerra. Pioneiros em Brasília, eles registraram o 16º comércio da capital federal. Em 1963, Kammel foi ao Líbano visitar a mãe, que achava que era hora de ele se casar. Lá, foi apresentado à jovem Dalli Abdulhak, hoje com 63 anos, que, por coincidência, já havia conhecido na cidade de Beirute. Três meses depois, eles se casaram e, no ano seguinte, voltaram para o Brasil. Em 1964, foi a vez de o irmão Youssef ir ao Líbano. Ele voltou, no ano seguinte, casado com a irmã de sua cunhada, a libanesa Bahia Abdulhak, 57 anos. Cada casal teve seis filhos. As duas famílias moravam na 711 Sul quando souberam de um terreno de 20 mil metros quadrados colocado à venda no Park Way. ;Ficava no meio do nada. Não tinha luz, água, telefone, asfalto, nada;, descreve Kammel. Mas o preço era bom e os irmãos compraram o terreno. Em 1975, começaram a construir a mansão que seria dividida em duas casas. Uma para cada família. Mas a mudança preocupava os irmãos. Os amigos falavam que o Park Way era um matagal e poderia ser perigoso. Eles decidiram então fazer a fachada e as portas da casa voltadas para dentro, como numa fortaleza redonda cercada por uma varanda interna que tem 99 arcos de tijolos. A mansão parece mais um palácio. A família de Kammel fica do lado esquerdo do círculo, e a de Youssef, do lado direito. No centro, uma grande área verde com muitas plantas, uma fonte com um chafariz e uma piscina enorme. Colegas da filha de Kammel, Nura Abdulhak, contam que a primeira vez que foram lá achavam que o local era uma pousada. Provavelmente porque os quartos não são interligados com os demais cômodos. As portas da sala e dos quartos dão direto para a varanda, que ronda o jardim. Para alguém ir para a cozinha, por exemplo, tem que sair da casa. ;Isso garante muita privacidade;, afirma Nura. Difícil mesmo é só na hora que alguém faz festa. ;Do quarto, a gente ouve tudo como se estivesse dentro da festa;, diz Dalli. Reunida, a família diz que o clima é tranquilo e pacífico. Por isso, nunca precisaram estabelecer regras. Dividem as contas irmamente e se encontram todos os domingos em um tradicional almoço árabe oferecido na churrasqueira. No mais, reúnem-se para tratar de negócios ou durante caminhadas matutinas diárias pela varanda da casa, para manter a saúde em dia. Os filhos que ainda residem por lá afirmam que, se puderem, continuarão a morar em família sempre. Três dos filhos de Kammel, inclusive, já fizeram isso. Casaram-se e montaram um condomínio de três casas, a 300m da residência dos pais. ;É praticamente aqui. Daí os netos podem vir sempre brincar e podemos acompanhar o crescimento deles;, ressalta Dalli. O bosque das ex-crianças O que mais chama a atenção no condomínio da família Castro é a garotada. Os 18 netos dos aposentados e pioneiros de Brasília João José de Castro, 75, e Jandira Maria Castro, 69, cresceram juntos no terreno de 20 mil metros quadrados aprontando poucas e boas. Já acamparam inúmeras vezes no jardim, subiram em centenas de árvores, brincaram de pique-pega e de pique-esconde durante a noite vestidos de preto, subiram nos telhados, caçaram vaga-lumes, quebraram braços e pernas, construíram casas na árvore e nadaram até altas horas na piscina. A infância perfeita, como eles dizem. Os primos são tão unidos que hoje, no fim da adolescência, ainda saem juntos e se reúnem todos os dias. ;A gente era muito livre e feliz aqui quando criança, não brigávamos quase nunca. Tivemos muita sorte. Acho que condomínios familiares são muito bons para aproximar as crianças;, opina a estudante Ana Luiza, 17 anos. Mas, apesar da sensação de liberdade dos jovens, que podem usufruir à vontade de todo o espaço do condomínio, o avô, até hoje, os mantêm sob vigilância cerrada. Lá existe um único interfone, que fica na casa de João e Jandira e, qualquer um que queira entrar, precisa da permissão deles. O que complica a vida das netas, que morrem de vergonha quando algum namorado novo vai pegá-las em casa. ;Teve uma vez que um namoradinho meu tocou o interfone e meu avô atendeu. Ele fez mil perguntas. Perguntou quem ele era, o que fazia, quais as intenções etc. O maior mico;, ri Ana Luiza. O mesmo vale para os primos, que também são ciumentos. As três meninas, Janaína, Ana Luisa e Gabriela Castro têm de submeter cada namorado novo ao crivo dos homens do condomínio. ;Aqui o avô e os primos são mais ciumentos que o pai;, diz Gabriela, 16. João José foi criado no interior de Goiás, com os 10 irmãos e os pais. Segundo ele, é daí que surgiu a vontade de ter sempre a casa cheia e a família por perto. Em 1957, João veio a Brasília para trabalhar no primeiro hospital do DF. Dois anos depois, casou-se com Jandira. Foram morar em um apartamento pequeno no Plano Piloto. Tiveram cinco filhos e a falta de espaço passou a incomodar João. Foi então que comprou um terreno grande para a família, já imaginando que os filhos poderiam construir suas casas por lá no futuro. ;Era o meu maior sonho;, enfatiza ele. Em 1980, eles se mudaram para o Park Way. Por 10 anos, moraram numa casinha improvisada, enquanto a outra residência era construída aos poucos. ;Foram os melhores anos da minha vida;, diz Jandira. Quando algum filho se casava, continuava morando na casa dos pais até que o novo lar ficasse pronto. Hoje, moram por lá quatro filhos de João, quatro noras e genros, e 13 netos. Os outros dois filhos do casal ; um que mora no Guará e outra que vive nos Estados Unidos ; têm também suas frações de terreno no condomínio. Em uma das casas, inclusive, não mora nenhum filho de João, e sim a ex-nora, a assessora Andréa Castro, 44 anos, e seus três filhos. O ex-marido voltou a morar com João e Jandira, na casa que, segundo eles, é a mais frequentada do condomínio. ;A casa do vô é mais agitada. Temos que passar aqui todo dia para pedir a bênção. Daí, aproveito também para saber se o almoço deles será melhor do que o lá de casa;, brinca André Luiz, 18 anos. ;Espero que o condomínio seja da nossa família por muitas gerações;, ressalta o neto Gabriel.