Nem de longe Júlio* aparenta os 16 anos que tem. Parece muito mais jovem, numa mistura da baixa estatura e do corpo franzino. O olhar presente nas poucas fotos de família também demonstra uma certa fragilidade, fruto do semblante sempre desconfiado. A ficha policial do menino, no entanto, é de um homem feito. E perigoso. Até o último dia 20, ele havia acumulado 51 passagens pela polícia do Distrito Federal e de Goiás. A maioria por causa de furtos, roubos e tráfico de drogas. Todas as ocorrências estão guardadas em uma pasta na casa do pai, no Gama. Com quase 60 anos, seu Artur* não consegue esconder os sinais do cansaço e do desespero com a situação do filho. ;Já me mandaram esquecer que eu tenho filho. Que ele não tem jeito;, afirma o pai. ;Mas ele não é um menino mau. Foi deixado desse jeito na infância.;
A criação de Júlio foi mesmo cheia de percalços. Mas será que isso é suficiente para uma criança se tornar um adolescente, jovem ou adulto criminoso? Nas últimas quatro semanas, o Correio investigou as origens da violência. Por meio de três casos de reincidência de adolescentes infratores, buscou encontrar as falhas da sociedade e do Estado na formação de cidadãos éticos. A ideia não é justificar os atos bárbaros cometidos pelos adolescentes, mas humanizar garotos que, pelo senso comum, seriam considerados casos perdidos. Os exemplos e as reflexões serão contados em dois dias de reportagens com a visão de familiares, promotores, juizes, especialistas, professores, conselheiros tutelares e dos próprios adolescentes. Dados do Centro de Atendimento Juvenil Especializado mostram que a reincidência de adolescentes que cumprem regime provisório gira em torno de 80%. Já a dos que passam por internação, que pode durar até três anos, chega a 10%.
No caso de Júlio, a história tem contornos assustadores. No início deste ano, o menino colocou três parceiros do crime dentro de casa para assaltar com um facão o irmão apenas dois anos mais velho. Os criminosos levaram de tudo, até o telefone celular da empregada. Antes disso, ele havia roubado R$ 2 mil da assistente social responsável pela aplicação de uma medida socioeducativa no Guará. Isso sem falar no uso e na venda constantes de drogas. Para o pai do garoto, tudo começou quando Júlio tinha pouco menos de 2 anos. Foi nessa época que os pais se separaram em um divórcio conturbado.
Agressões do padrasto
Aos 5 anos o menino foi morar em Pedregal (GO) com a família da mãe e do padrasto. ;O irmão ficou com o pai e Júlio se revoltou;, conta um conselheiro tutelar do Gama. Além disso, constam, nos registros da Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente (DPCA) que, com 7 anos, Júlio passou a ser vítima de ameaça e lesão corporal por parte do padrasto. Aos 9, começou a responder com violência a todos os que o contrariavam. Preocupada, a família fez inúmeros exames de saúde com neurologistas para buscar as causas da agressividade. Já nessa época, a criança abusava do álcool ; com o passar do tempo, foi iniciada na maconha, na cocaína, no solvente, na merla e, mais recentemente, no crack.
A situação chegou ao limite no dia em que a mãe largou, literalmente, o menino no meio de uma feira no Gama. Com o filho, apenas uma carta escrita por ela dizendo que não o queria mais. ;Ele acaba com tudo e tenho medo que ele avance contra mim;, citava o texto. A partir daí, Júlio se tornou um menino incontrolável. ;Ele não tem limite algum. Tudo o que fazemos não surte resultado;, observa um conselheiro tutelar. Matriculado numa escola particular, virou figura conhecida na direção. ;Ele ameaçava todo mundo e ainda investiu fisicamente contra alguns alunos;, conta um professor. Poucos meses depois, foi expulso. No histórico escolar, aos 12 anos, ele ainda estava na primeira série do ensino fundamental.
Más companhias
Sem estudar, o garoto se entregou às más companhias que potencializaram o mau comportamento. Dinheiro falso, furtos e assaltos à mão armada se acumularam em processos abertos na Vara da Infância, na Promotoria, no conselho tutelar e em delegacias. Em uma das passagens pelo Juizado, foi encaminhado, como parte de uma medida socioeducativa, ao Lar de Betel, a 15km de Cocalzinho (GO). ;A gente fez tudo o que podia, mas ele não se interessava por nada;, lembra o pastor Ernesto Swartele, responsável pelo abrigo que trabalha a recuperação de jovens.
A instituição não era de regime fechado, os adolescentes tinham direito de sair e voltar. Júlio aproveitou a liberdade para agir dentro do abrigo. ;Ele furtava os meninos toda vez que ganhávamos doações e trocava os presentes por drogas em Cocalzinho. Para piorar, ele trazia as drogas para cá e a passava aos meninos mais novos;, afirma o pastor. Júlio ganhou inimigos e foi ameaçado de morte. Após quase dois anos, acabou obrigado a sair de lá para não morrer.
Júlio já está fora do Lar de Betel há dois anos e, de lá para cá, nada melhorou. Só nos meses de janeiro e fevereiro foram seis ocorrências ; quatro delas registradas pelo próprio pai. ;Me aconselharam a parar de passar a mão na cabeça dele;, afirma Artur. Por enquanto, a estratégia não surtiu resultado. Um punhado de joias, roupas e até as galinhas e o galo do pai, que criava os bichos para comer ovos caipiras, foram levados.
*Nomes mudados em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente
Engajamento de todos
As causas da reincidência de jovens infratores são tão complexas quanto graves. Falta de limites, responsabilização insuficiente e falhas no sistema de aplicação de penas são apenas algumas das causas apontadas. ;A aplicação das medidas é insuficiente para produzir uma reflexão ou mudança. Isso dá uma sensação de impunidade;, observa o promotor da Promotoria da Infância e da Juventude Anderson Pereira de Andrade. Apesar de manifestações diferentes da violência, os adolescentes infratores têm perfil com características comuns.
Vêm de famílias desestruturadas, consomem álcool e são viciados em drogas. Agregam-se ao tripé explosivo particularidades da sociedade moderna, marcada por individualismo, intolerância, falta de limites e desrespeito ao outro. Vale lembrar, também, o apelo ao consumo, que estimula a corrida por produtos cuja posse representa status.
De acordo com especialistas, são dois os caminhos a serem adotados: o da prevenção e o da repressão. Evitar que o jovem dê o primeiro passo na direção da trilha que conduz à brutalidade e ao descontrole é o principal desafio. Impõe-se engajar as famílias, os clubes de serviço, organizações não-governamentais e o Estado na cruzada em favor da juventude. ;Enquanto eles se mantêm no sistema, o risco de ingressar na marginalidade é menor. Rompido o limite, o jovem se candidata a ingressar em instituições que deveriam reeducá-lo e ressocializá-lo;, completa o promotor.
Mesmo ambiente
Após a prática de atos infracionais, as medidas não são suficientes para recuperá-los. De acordo com a psicóloga Angela Branco, do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB), não existe vontade política para aplicar medidas socioeducativas. ;Elas não saem verdadeiramente do papel;, afirma. E, quando aplicadas, não se refletem no meio em que o jovem vive. ;Ele volta para casa e encontra o mesmo ambiente;, observa a ex-diretora do Caje Heloísa Maira Viana, que trabalha há quase 30 anos com adolescentes infratores.
A socióloga Miriam Abramovay ressalta que se unir em grupos é uma característica comum da adolescência. Mas, por motivos banais, os jovens desvirtuam ;as galeras; e partem para situações de violência extrema e tráfico de drogas. ;A violência aparece como marca da masculinidade, de autoafirmação. Muitas vezes, os jovens já vivem em situações vulneráveis e o padrão de relacionamento deles se manifesta por meio da violência;, explica.
Entre todos os fatores que alimentam as reações extremadas dos jovens ; a banalização da violência em jogos eletrônicos e na televisão, a falta de perspectiva e a desestruturação familiar ; um é citado com unanimidade pelos especialistas: a família. Segundo eles, os pais devem estar atentos às companhias dos filhos, aos lugares que eles frequentam e em quais tribos se espelham.
Três homicídios no currículo
Até os amigos da rua, em um dos bairros mais violentos de Planaltina, têm medo dele. Afinal, aos 17 anos, Lúcio* tem uma ficha de impressionar muito bandido grande. ;Ele sumiu do mapa. Até saiu do país. Se eu fosse a senhora, não mexia com ele não;, responde um adolescente de 16 anos ao ser abordado pela reportagem do Correio. O garoto conselheiro era o mais velho de um grupo de cinco que fazia plantão na esquina da rua onde fica a casa de Lúcio. A função dos meninos, naquela segunda-feira, era avisá-lo quando o carro do jornal fosse embora.
Lúcio não gosta de se expor. E tem bons motivos para isso. Ele já foi vítima de pelo menos sete tentativas de assassinato a tiros e outras tantas a faca. A última delas foi na porta de casa. A tia e a mãe estavam conversando sentadas no batente da porta quando ouviram o estampido e o garoto correndo para dentro de casa. Um dos tiros passou de raspão, mas nem foi preciso ir para o hospital. ;Ele tem sete vidas e um anjo da guarda trabalhador;, comenta a tia.
As vítimas de Lúcio não tiveram tanta sorte. Com menos de cinco anos no crime, ele já matou três. E, em tentativas malsucedidas de homicídio, feriu cinco. Nesse período, acumulou 17 ocorrências na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), sendo a primeira aos 14 anos. Foi pego com arma de uso restrito planejando um assalto.
Guerra de gangues
O garoto também passou seis vezes pelo Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje). Todas elas provisoriamente. A última foi há menos de três semanas. Ele passou 10 dias no Caje depois de matar o melhor amigo por causa de desavenças ligadas ao tráfico. O homicídio deu mais moral entre a galera. A morte do amigo e os outros dois assassinatos foram motivados pela guerra de gangues de Planaltina. O conflito é histórico. Remonta ao fim dos anos de 1980, quando uma rivalidade entre bairros se transformou em guerra e tirou dezenas de vidas de jovens. Nos anos 1990, a violência entre gangues se acirrou.
De acordo com o relato de um policial que acompanha o jovem desde o início de sua vida na criminalidade, ele não cometeu latrocínios apesar de sempre assaltar armado. ;As mortes foram de inimigos e até amigos do tráfico e da rua;, resume o policial. Apesar de um currículo tão ruim, Lúcio é um adolescente que se parece com tantos outros. Gosta de pertencer a um grupo e de liderá-lo. Gosta de namorar a menina mais cobiçada do bairro e sente saudades da mãe, que passa a semana inteira fora trabalhando em casa de família. ;Ele é um bom menino. Só ficou assim porque andou com gente errada;, tenta justificar a mãe. Para a vizinhança, o sentimento é oposto. ;É ele a má companhia;, afirma uma moradora da rua.
Pouco estudo
A ficha extensa de Lúcio, segundo o relato da tia, começou pela miséria. Sem conhecer o pai, sem dinheiro para pagar comida, aluguel e as contas de consumo, ele ficou indo e vindo da casa de parentes, sempre vendo a mãe sofrer. Com 12 anos, tomou para si a responsabilidade de ser o ;homem; da casa. Passou a furtar e, logo em seguida, a roubar. A facilidade fez com que a prática virasse rotina. E, hoje, ele nem luta mais para sair. Como tantos outros, não sabe fazer nada além de roubar. ;Ele se meteu em muita confusão na escola numa época em que o tráfico e as guerras de gangue ocorriam dentro do muro. Hoje, pelo menos, conseguimos manter a violência fora;, conta a diretora da escola pública do bairro. Aos 17 anos, ele só tem a terceira série do ensino fundamental.
No último mês, Lúcio recebeu da Justiça a orientação de cumprir uma medida socioeducativa mas, como o local que ele deve frequentar fica em outro bairro de Planaltina, já avisou para a tia que não vai. ;Ele não quer morrer;, afirma ela.
MEMÓRIA
Poucas perspectivas
Em junho de 2005, o Correio publicou uma reportagem mostrando que 82% dos adolescentes encaminhados ao Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje) voltavam a ser internados. O percentual constava da dissertação de mestrado em Sociologia da Universidade de Brasília feita pela socióloga Bruna Gatti. Em junho de 2007, novo levantamento da UnB, coordenado pela professora de serviço social Maria Lúcia Pinto Leal, apontou na mesma direção ao calcular a reincidência em cerca de 80%. Esse estudo trazia a informação de que, entre 2003 e 2005, 178 adolescentes foram mortos enquanto cumpriam medidas socioeducativas.
A Vara da Infância e da Juventude (VIJ) monitora a reincidência nos casos de liberdade assistida e de prestação de serviço comunitário. Em 2002, data do último levantamento, os índices eram 68,5% e de 13%, respectivamente. De acordo com a VIJ, as médias se mantêm.