Jornal Correio Braziliense

Cidades

Poetisa conhecida das noites de Brasília já escreveu 20 livros e tem cinco inéditos

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Você certamente já a viu. Se vai a bares e restaurantes, com frequência ou não, já esbarrou com ela. Se vai ou foi ao velho e bom Beirute ; a melhor subversão de Brasília e, por isso, sua mais maluca tradução ;, já cruzou com aquela mulher de brincos e colares grandes. Ah, se já... Se já foi ao Libanus, idem. Ao Feitiço Mineiro. Ao Café Martinica. Ao Balaio. Ao Café da Rua 8... Melhor parar por aqui. É tanto bar, restaurante e café que essa listinha não teria mais fim. Com certeza, aquela estranha foi à sua mesa. Mas muito provavelmente você não sabe ; e talvez nunca quis saber ; seu nome. Alguns, entretanto, até sabem. Conversam com ela. E a convidam para se sentar. Há uns que a deixam falar, fazem perguntas, folheiam o que ela carrega. Mostram interesse. Argumentam. Elogiam. Outros, porém, trocam meia dúzia de palavras, não folheiam o que aquela mulher carrega. E ela parte. É preciso ir. A caminhada é longa, cansativa, extenuante. Tem sido assim há 23 anos. Esse é o seu ofício. Aquela mulher de estatura mediana, cabelos ondulados, olhar ao mesmo tempo de curiosidade e certo espanto, talvez uma timidez que mal consegue disfarçar, atende pelo nome de Valmira Alves. Valmira o quê? Deixa pra lá. Ela se apresenta apenas como Mira Alves. É artista ; escreve poesias e pinta telas abstratas e paisagem. É pela sua obra que ela caminha de bar em bar, tentando vendê-las. Há 23 anos, Mira vive a noite e sua madrugada. Na penumbra da cidade, nos bares lotados, na solidão que dilacera os andarilhos, no desamparo dos bêbados, na esperança dos que batalham, lá está Mira. É igualmente personagem. Mais um na vida anônima dos milhares de anônimos de Brasília. Mas eis que, a certa hora, depois de andar as Asas Sul e Norte, pulando de um ônibus para o outro, ou mesmo a pé, ela desaparece. Ninguém dos bares consegue dizer para onde foi. Ninguém sabe, além do que escreve nas suas poesias, mais nada sobre ela. É como um mistério. Durante o dia, ninguém a vê. Onde aquela mulher mora? Onde vive? O que pensa? Quais são seus planos? Medos? Por que escreve? O que a leva a pintar? Quem é Mira, afinal? Depois de algumas conversas, Mira aceitou falar ao Correio. E nos permitiu chegar até onde mora, um apartamento humilde na 709 Norte, com janelas para a W3, o qual divide com mais sete outras pessoas. É uma espécie de república, gente tão anônima quanto ela. É ali, desde setembro, que Mira procurou abrigo, depois de deixar Luziânia (GO), cidade onde nasceu. Aprendizado em casa Tarde de ontem, 16h, Mira nos espera no lugar combinado. Há uma escada íngreme que se vence até chegar ao seu apartamento. Lá está a poeta da noite. Sorriso bom, olhar ainda desconfiado. Sobre a pequena mesa da saleta, livros (feitos em papel A4), cadernos cheios de poesias e telas. Aos poucos, os segredos daquela mulher de 49 anos, sem filhos e solteira (;por opção, mas sou muito namoradeira;, brinca) vão se dissipando. Mira é simples. Fala baixo e os olhos encaram o interlocutor com delicadeza. O sorriso é contido. Filha de um agricultor e de uma dona-de-casa, foi criada na roça. Carrega uma timidez que ela mesma tenta vencer. ;Só aos 13 anos, com a separação dos meus pais, fui para a cidade com minha mãe;, conta. Aos 14, ela deixou a distante Luziânia para morar em Brasília, na casa de uma irmã mais velha. Parou na Asa Sul. Aqui, estudou. Terminou o ensino fundamental e o médio. E formou-se em Teologia. Sim, em Teologia, não está escrito errado, não. Em tempo: a escritora se confessa católica praticante de ;ir à missa todo domingo;, faça chuva ou sol. Mas a poesia sempre lhe tocou mais profundamente. ;Meu pai, lá na roça, fazia versos de improvisos e tocava viola de moda. Cresci assim;, ela diz. Ainda menina, apaixonou-se por Casimiro de Abreu. ;O poema Meus oito anos me marcou profundamente;, fala. Na adolescência, passou a admirar Clarice Lispector, Mario Quintana e Adélia Prado. E começou a trabalhar, para se sustentar. Vendeu muito produto de beleza de porta em porta. Ou seja, andar sempre foi a sina de Mira. Em 1986, a artista retornou a Luziânia. Junto com escritores locais, fundou o Grupo Asas. Lançaram um jornalzinho alternativo na cidade, todo voltado à publicação de poesias. Mira passou a vender o jornal pelos bares do Plano Piloto. ;O Beirute foi o primeiro que me deixou entrar e vender;, diz. A experiência foi tão agradável que, em 1987, ela lançou seu primeiro livro de poesias: Calliandra, a flor do cerrado, com 1,5 mil exemplares, todo bancado com suas poucas e suadas economias de andarilha e ajuda de uma boa irmã. ;Em um ano, de bar em bar, a edição se esgotou. Vendi tudo;, vibra, como menina que acaba de ganhar a boneca preferida. Sentimentos Mira nunca mais parou. De lá pra cá, passaram-se 23 anos. São 20 livros (em papel A4) e mais cinco ainda inéditos. Sem computador, ela escreve à mão. Depois, um bom amigo digita pra ela. E a obra fica pronta. ;Quando escrevo, tô explicando o mundo pra mim mesma. É uma libertação;, constata. E confessa, comovida: ;A palavra muda, consola, alimenta, liberta e salva. A mim me salvou. E a poesia é minha opção pra viver;. Há dez anos, ela resolveu ressuscitar seu talento de pintora. ;Pinto óleo sobre tela e acrílico. É uma pintura abstrata e gosto de paisagem. Tudo que lembra minha infância na roça: flores, cavalos e pássaros;, explica. E assim, com livros e telas, de ônibus ou a pé, ela ganha a noite. Mistura-se a uma gente tão anônima quanto ela. Vai vender poesia. Se é bom ou ruim, cabe ao leitor opinar. Mira fala dela, de sentimentos muito particulares, de amores e sonhos. Fala, em essência, de vida. ;Aos 20 anos, eu achava que a melhor defesa era o ataque. Fazia isso porque sentia medo do mundo. Hoje, não tenho mais medos. Não preciso mais me defender;, filosofa. ;O que me entristece? O preconceito, de todas as formas, e a injustiça no mundo.; Esta é Mira, que aparece do nada e vai embora com a mesma intensidade. Da próxima vez que você a vir em alguma quebrada dessas, permita-a que se aproxime. Decididamente, ela não morde. Folheie o que a poeta andarilha carrega. Ela só quer falar, mesmo que não diga uma só palavra oral, de poesia. É disso que vive. É dessa forma que encarou a vida, seus mistérios e a escuridão pária da noite. ARTE AMBULANTE Contato com Mira 8157- 4119 Trechos de Calliandra Imensurável Não quero consolo de frases feitas Frase feita não é eficaz E tem efeitos colaterais Não quero consolo de frases Pronta-entrega Nem sob-medida Imensurável É o meu amor Chegando a Brasília depois de um feriado Cheguei para te fazer companhia Nesta noite quase fria Silenciosa noite O vento sopra como chicote em açoite Todos te deixaram, eu também Mas cheguei! Para ficar contigo nesta noite. Sei, deves estar sentindo só Todos partem para os campos, Matas, montanhas, mares Todos partem e te deixam só Todos só te dão Solidão Com vontade Ver você partir Foi uma dor que não tive Estrutura para admitir Disfarcei, fingi Não vi Não pensei no que perdi Sobrevivi Sobrevivi com vontade Com vontade de morrer Morrer de dor Morrer de amor Com vontade de morrer Morrer de rir Rir da capacidade Capacidade de disfarçar Tamanha dor Pessoa amada A pessoa amada é aquela Que vai contigo pelo mundo Afora Que fica contigo pela noite Adentro. É teu homem, teu menino Tua pequena, tua mulher É aquele alguém que te oferece O ombro Que te oferece o lenço Que ouve o teu soluço O teu silêncio É aquele alguém que tu Tens para te tratar bem É aquele alguém que te espera Sentado Que te aplaude de pé