R$ 0,50. É esse o preço de uma pipa na Vila Estrutural. Os amigos Tiago Luiz Nunes, de 11 anos, e Robert Ítalo, de 10, juntaram umas pratinhas soltas pela casa e pediram outros centavos para as mães que lavavam roupa para aproveitar um raro dia de sol nesta época do ano. O valor do papagaio, no entanto, é infinitamente maior. Quase incalculável. Os gravetos de bambu, o papel de seda e a rabiola feita com pedaços de saquinho de supermercado garantiram a diversão de alguns dias de férias. Só naquela manhã de sexta-feira, foram três horas de muita risada, correria e brincadeira na companhia do vizinho Marlon de Sousa Abreu, de apenas 3 anos.
Marlon bem que tentou soltar o papagaio, mas depois de correr quatro vezes para fazer a pipa subir acabou entregando o brinquedo para os amigos mais velhos e se contentando em ficar ao lado dos dois num pedaço de gramado na entrada da cidade. ;Nem sempre dá para brincar aqui. Minha mãe fica preocupada porque ela acha que, na Estrutural, tem muito carro e é perigoso;, afirma Tiago. ;Ia ser massa se aqui tivesse campinho para correr;, completa Robert.
O pai de Marlon, o funcionário público Idelmar Jesus Abreu, de 54 anos, acompanhava os três meninos para garantir que eles não iam se meter em confusão. ;Acho muito importante que as crianças tenham espaço para correr e brincar;, afirma o servidor da Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb).
Na sexta matéria da série sobre as garantias legais para os cidadãos brasilienses com menos de 18 anos, o Correio aproveita para destacar a estrutura da cidade como espaço para o lazer, assim como acontecia no início do século passado, quando a vida era menos acelerada e a crise não era mundial. E conta a história de criativos meninos e meninas que, apesar da negligência diária da sociedade em relação aos direitos fundamentais e da correria dos centros urbanos, conseguem realizar a difícil tarefa de ser criança.
Sonho
Durante muitos dias de dezembro, o pequeno Quemuel Lima, 6 anos, ficou na porta de casa correndo com a pipa num espaço de menos de 10 metros. Ela nunca passava dos três metros de altura. No último fim de semana, realizou o sonho, pela primeira vez, de correr por um espaço maior e ver o papagaio ganhar o céu azul. ;Meu pai trabalhava em uma olaria e eu passava o dia com ele. Meu sonho era ter uma bicicleta ou brincar como outros meninos;, lembra Manoel Silva Lima, de 36 anos. Funcionário de uma marmoaria, ele aproveitou os dias de folga na virada do ano para fazer diferença na relação com o filho Quemuel. Foi com o menino na grama nova plantada sobre a tubulação de esgoto recém-criada na Estrutural. ;Não tive oportunidade de passar o tempo brincando na infância. Lá em casa, a gente não tinha dinheiro. Hoje, eu e a mãe dele nos esforçamos para que ele seja a criança que eu não fui;, comenta.
Viver o sonho de ser criança, muitas vezes, é tarefa difícil até mesmo para os meninos e meninas, Adriano da Silva Conceição, 10 anos, Gildevaldo Alves Santana, de 15, e Rosileide da Silva, de 11, estão em Brasília desde o Natal. Os três primos vieram de Planaltina de Goiás com a família em busca da generosidade e da caridade tradicionais do fim de ano. ;A gente veio porque lá em Brasilinha não tem trabalho. Minha mãe veio pedir e a gente vai voltar esta semana para casa;, comenta Gildevaldo.
As duas famílias ; com cinco crianças e quatro adultos ; estão espremidas em um barraco nas proximidades dos supermercados no fim da Asa Norte. Durante o ano, moram em Goiás , onde os pais trabalham fazendo bico, lavando roupa ou em chácaras da região e, toda época de festas, descem para a capital com o objetivo de engrossar o orçamento doméstico. Rodrigo explica que eles vão na escola todos dias em Brasilinha, mas que nas férias é comum passarem semanas em Brasília.
Longe de casa
A vida longe de casa não é fácil para a meninada. São muitos os direitos negligenciados e o lazer está entre eles. Não tem onde a criançada brincar com segurança e nada para fazer. Na última sexta-feira, a mistura de tédio e calor ; fazia 30º C ; inspirou Gildevaldo. Os meninos desceram correndo para a ponta norte do Lago Paranoá, no píer de madeira ao lado da Ponte do Bragueto. A água estava gelada, mas ninguém se importou. Era um tal de pular na água, nadar até a beira e pular outra vez. ;Tive a ideia de vir nadar aqui e a gente desceu para brincar;, conta. ;Minha mãe deixou. Só falou para eu ficar no rasinho;, completa Rosileide. No meio da brincadeira, as crianças conheceram outro menino e, como acontece com o pessoal desta idade, ficaram amigos imediatamente.
Rodrigo Silva Sousa, de 12 anos, é filho de catadores de papel que moram no início da Asa Norte. Ele estuda na Vila Planalto e, durante as férias e longe do pátio da escola, não tem espaço para correr e brincar. Rodrigo aproveitou que o tio foi pescar no Lago Paranoá para nadar com os meninos de Brasilinha. Naquela hora, não importava muito de onde eram os amigos, que roupas usavam para nadar e nem as dificuldades da vida. Era só ser criança.