Rafael tem 18 anos. Rodrigo, 20. Quando estão de folga no Exército, ambos podem ser encontrados no Cruzeiro Center. O expediente deles no conjunto comercial próximo ao Setor Militar Urbano (SMU) costuma ir das 19h à meia-noite. Mas, nesse caso, deixam de lado o uniforme verde-oliva. Assim como ao menos duas dezenas de colegas de farda, os amigos são michês. Vendem o corpo para engordar o soldo de recruta e comprar tênis e roupas caros.
Rafael e Rodrigo são os nomes de guerra da noite. Os militares com rostos de meninos não revelam as identidades verdadeiras. Temem um castigo, como cadeia, caso seus superiores do Batalhão da Guarda Presidencial descubram a atividade paralela. Mas eles, como os demais milicos que se prostituem no Cruzeiro ; todos vindos do interior de Goiás ;, não escondem a fascinação pelo dinheiro arrecadado com os programas noturnos. ;Dá pra tirar até uns R$ 500 na noite;, ressalta Rafael, natural de Goianésia.
Há outro lado do qual eles não gostam de falar. O da violência contra homossexuais. Como Rafael e Rodrigo, os militares de baixa patente que se prostituem em Brasília andam em grupo. Em parte, para se defender ou tentar camuflar a atividade. Mas também para atacar clientes em potencial. Alguns se valem da força física e de armas para intimidar, roubar e até matar homens que circulam em seus carros pelas quadras comerciais do Cruzeiro em busca dos prazeres proporcionados por outro homem.
Ao menos 10 militares do Exército foram presos acusados de envolvimento em assassinatos e tentativas de homicídio no DF, nos últimos dois anos. Eles mataram três pessoas, segundo a polícia. Seis dos suspeitos tinham algum tipo de relação afetiva com a vítima. Em depoimentos em delegacia ou na Justiça, contaram que costumavam freqüentar points gays nos horários de folga no quartel. O levantamento do Correio foi feito com base em reportagens publicadas desde janeiro de 2006.
Condenados
Dos 10 acusados, quatro acabaram condenados a 20 anos de cadeia pela morte de um ginecologista. O crime ocorreu em setembro de 2006, na porta da casa da vítima, no Lago Norte. O médico de 65 anos levou três tiros, dentro do carro, um Corolla. Segundo o processo do caso, o ginecologista foi baleado por Marcos dos Santos Silva, 21 anos, que estava no veículo. Ele era soldado do 11º Depósito de Suprimentos desde 2003 e teve ajuda de três colegas de quartel, de acordo com as investigações.
Os soldados Oriston Rodrigues de Souza, 22 anos, Wanderlúcio Lopes da Silva, 21, e Maykon Pereira da Costa, 22, seguiram o carro do médico até a casa dele. O ginecologista não percebeu que os demais militares esperavam pelo colega em um Corsa chumbo, estacionado do lado de fora da casa. Uma briga física e verbal entre a vítima e Marcos resultou no assassinato do médico. Testemunhas afirmaram que Marcos era garoto de programa.
O enredo é parecido com o caso desvendado no início do mês, quando a polícia encontrou o corpo de um servidor público com tiros na cabeça e no braço. Ele estava em um matagal perto da DF-430, estrada entre Taguatinga e Brazlândia. Os soldados Jairo de Carvalho Barbosa e Bruno Lopes Rodrigues, ambos de 19 anos, foram presos acusados de seqüestrar, roubar e matar o bancário de 41 anos. Ele havia desaparecido no último dia 10.
Jairo Barbosa estava com cartões de crédito e os dois celulares da vítima. O soldado do Batalhão da Guarda Presidencial disse ter atirado no servidor. Apontou o colega de quartel como comparsa no crime. Os dois contaram aos investigadores que encontraram a vítima em um bar do Cruzeiro Center. Teriam combinado um programa sexual. Renderam o homem dentro do carro dele. Em depoimento, Jairo disse ter decidido matá-lo porque eles se conheciam.
Cine pornô
Os bares do Cruzeiro Center sempre atraem muitos soldados, especialmente devido à proximidade do SMU, onde ficam as unidades do Exército em Brasília. No centro comercial, há uma atração direcionada ao público gay. Trata-se de um cinema que só exibe filmes pornográficos, todos os dias, das 11h às 23h. O local conta ainda com quartos escuros para encontros entre os freqüentadores.
Até o início da década de 1990, os michês militares se concentravam nos viadutos sobre a pista de ligação entre o Cruzeiro e o SMU. Com a repercussão negativa, a Polícia do Exército começou a prender os recrutas parados embaixo das passagens de concreto.
Para manter o vício
Diferentemente dos militares, a maioria dos michês da área central do Plano Piloto se prostitui para manter o vício das drogas. Aqueles em estado de maior dependência, usuários de merla e crack, oferecem os serviços nos passeios e estacionamentos da plataforma superior da Rodoviária e no Setor de Diversões Sul (Conic). O programa com eles sai a partir de R$ 10. Geralmente são realizados nos carros dos clientes.
Já os boys, como são conhecidos os michês de luxo, freqüentam as saunas gays. Há uma no Conic e outra no subsolo do Setor Comercial Sul. Funcionários de uma dessas saunas contam que 90% dos boys são usuários de cocaína e drogas sintéticas ; sucesso nas festas embaladas por música eletrônica. ;Mas muitos não conseguem segurar a onda. Conheço um antigo freqüentador da sauna que, por causa do crack, foi para a rua. Faz sexo até nos banheiros da Rodoviária;, comenta um segurança.
Alguns desses michês levam vida dupla. Têm namorada ou mulher e a família não sabe das atividades noturnas deles. É o caso de um homem de 27 anos, morador de Goiânia. De sexta-feira a domingo, ele percorre os 210km da BR-060 entre a capital goiana e Brasília para oferecer o corpo em uma sauna do Setor Comercial Sul. Gaba-se de ter sido levado por um dos clientes para Portugal, de onde voltou com R$ 24 mil. O suficiente para comprar um lote e a moto usada nas viagens de fim de semana.
Moral e punição
Ninguém do Exército quis dar entrevista. Por meio de uma nota enviada por e-mail, a instituição ressaltou que ;deve ser levado em conta que a Força não tem como acompanhar e controlar as atividades extraquartel de seus integrantes;. Garantiu que ;independentemente do posto ou graduação, o militar que for flagrado cometendo crime responderá, como qualquer brasileiro, a um inquérito policial. Dependendo das circunstâncias e pelas peculiaridades da carreira das Armas, poderá ser um Inquérito Policial Militar (IPM);.
O Exército ressaltou que ;o jovem (soldado) recebe instruções que procuram incorporar à sua personalidade noções de valores tais como: patriotismo, civismo, amor à pátria, solidariedade, entusiasmo, determinação e confiança, ferramentas que lhe permitirão levar a bom termo a sua missão, inicialmente como soldado e, em um futuro próximo, como cidadão brasileiro;.
O Exército também destacou que ;há uma especial atenção àqueles atributos da área afetiva que o tornarão (o soldado) um verdadeiro cidadão%u2026 Valores como honestidade, apego à verdade, disciplina, respeito aos superiores e às autoridades, dedicação, probidade, lealdade, rigoroso cumprimentos dos deveres e ordens e, mais importante, respeito e cumprimento às leis;.
Por fim, o Exército diz que, durante a permanência no quartel, o soldado ;recebe acompanhamento religioso, realizado pelos integrantes do Serviço de Assistência Religiosa do Exército, que enfatizam, além daqueles valores já mencionados, princípios morais e de bem;. (RA)
Memória
Um ano de terror
A morte em série de homossexuais assustou Brasília em 1996. Apenas no primeiro semestre daquele ano, 10 foram assassinados brutalmente e outros três desapareceram. Todos na área central de Brasília. Num dos casos, ocorrido em 15 de março, o soldado do Exército Cláudio Mathias Rivadalvo, então com 21 anos, matou o juiz de direito Luiz Cláudio Barbosa de Oliveira, 28.
Após participar de coquetel em um hotel e levar um colega para casa, o magistrado decidiu passar pelo Conic. Ele estacionou o carro e ofereceu carona ao militar. A história terminou em tragédia. O juiz foi encontrado estrangulado em seu apartamento. ;Ele ia me dar uma carona, mas depois me convidou para dormir na casa dele e eu topei;, contou o militar em depoimento na delegacia.
O soldado disse ter cheirado cocaína e bebido ;umas cervejas;, antes do encontro. O juiz havia ingerido oito doses de uísque durante o coquetel. O militar relatou que cochilava em um colchão no chão do apartamento quando foi assediado pelo juiz. ;Dei duas pancadas nele. Uma na cabeça e outra no pescoço;, contou Mathias, que deixou o local levando talões de cheque, cartões de banco, relógio, um casaco de couro e uma caminhonete Blazer.
Em função da seqüência de mortes como essa, a Polícia Civil lançou, em 1996, uma cartilha com dicas de segurança para os homossexuais. O volume de assassinatos diminuiu. Mas não acabou.