Há histórias que são escritas para nunca serem esquecidas. Algumas nos fazem rir. Outras nos levam às lagrimas. E nos arrebentam. Algumas nos encantam. E até nos redimem. Há ainda aquelas que nos chocam. Paralisam. E nos fazem olhar para nós mesmos. Essa começa assim: era uma vez uma moça que, aos 21 anos, viu sua vida mudar para sempre. Descobriu que o filho mais novo, então com 1 ano, tinha Aids. Se ele tinha Aids, ela também teria. Os exames não deixaram dúvida. Ela também era portadora do vírus HIV. E só descobriu quando o filho caçula começou a adoecer. Se o filho mais novo tinha Aids, o mais velho, com 3 anos, provavelmente poderia ter. E tinha. Mãe e dois filhos marcados para sempre.
Hoje, essa mulher tem 29 anos. O filho mais velho, 8. O mais novo, 6. Ela toma remédios para evitar que o mal a destrua. Nunca apresentou sintomas da doença. Nunca foi internada. Precisa ser forte para amparar as crianças. Tem conseguido. O filho mais velho está bem. Sem apresentar nenhuma manifestação da doença, a médica que cuida dele desde o início ainda não recomendou o coquetel. Ele estuda, sabe ler e escrever, é esperto, carinhoso, tem olhos expressivos e conquista o interlocutor nos primeiros cinco minutos de conversa.
Voando na sua bicicleta, sonha ser advogado quando crescer. ;Pra defender minha família;, ele diz, com ares de intelectual. O mais novo, além da atrofia cerebral, não anda, não fala e perdeu a visão. Precisa urgente de uma cirurgia para tratar a catarata em ambos os olhos. Espera por isso há 4 anos. No último relatório, um médico do Hospital de Base, onde será feito o procedimento cirúrgico, justificou: ;Aguarda a disponibilidade de anestesista;. O menininho é um sobrevivente. Nem os médicos acreditavam que ele chegaria aos 6 anos. ;Me disseram que ele não suportaria. Os sintomas nele vieram muito fortes e com muita rapidez;, conta a mãe.
Chamaremos essa mulher de Rose. O filho mais velho de Gabriel. E o mais novo, Rafael. Numa casa modesta e com pouca luz em Samambaia Norte, os três lutam pela vida. Em lágrimas, ela ainda se pergunta: ;Por que isso foi acontecer comigo? Meus filhos não mereciam viver assim;. E tenta entender o que poderia ter sido evitado, a transmissão vertical ; contaminação de mãe para filho ;, se um exame simples tivesse sido pedido pelo médico de um posto de saúde de Samambaia: ;Fiz pré-natal na gravidez dos meus dois filhos. Os médicos nunca pediram o teste de HIV. Eu vivia na roça, em Minas, não sabia que a gente podia pedir. Não imaginava que era um direito meu pedir pra fazer. Na verdade, não sabia nada sobre Aids;. Grávidas soropositivas, se tomam a medicação corretamente e não amamentam, podem ter filhos absolutamente saudáveis.
Há histórias que se contam com nó na garganta. A de Rose está sendo escrita, por ela mesma, com pedaços de lágrimas e resistência. Mas ao mesmo tempo ela se recompõe. E pensa no emprego de caixa que acabou de arrumar. A primeira carteira assinada de sua vida, o sonho que ela perseguiu a vida inteira. E logo a vontade de viver a contamina mais rapidamente do que o vírus inimigo que carrega no corpo. Todo dia quando acorda, ela comemora a vida. E, mesmo diante de tanta incerteza, exulta: ;Olho para os meus filhos e vejo que vale a pena continuar lutando;. Rose escreve sua história como se acreditasse em milagres: ;Deus pode fazer. E vai fazer por nós três. É a minha esperança;.
Busca do sonho
Corria o ano de 1998. Rose chegara a Brasília, vinda dos confins de Minas Gerais. Pai lavrador, mãe dona-de-casa, cinco irmãos, a moça, então com 18 anos, evangélica, veio estudar na capital. Queria terminar o ensino médio. E sonhava ser professora ou advogada. Hóspede de uma prima, em Samambaia, como contrapartida cuidava dos filhos desta. Logo conheceu um rapaz, com quem namorou por quatro meses. Mas o namoro não deu certo. O rapaz sumira, sem dar explicações. Um ano depois da chegada à terra onde sua vida mudaria, Rose voltou a Minas. Reencontrou um antigo amigo. Enamoraram-se. E ela, sem imaginar, voltou grávida para Brasília.
A igreja evangélica na qual congregava ajudou-a durante gravidez. Deu-lhe abrigo e alimento. Rose fez pré-natal. ;O exame de HIV nunca foi pedido;, ela conta. ;Por que eu não pedi pra fazer? Eu não sabia das coisas;, justifica. E assim, aos nove meses, de parto normal, no Hospital Regional de Ceilândia (HRC), nasceu Gabriel. Veio saudável, com peso bom e desenvolvimento dentro do esperado. Mamou com vontade o leite da mãe. E o tempo passou. Gabriel cresceu. Inteligente, logo aprendeu a ler e escrever rapidamente. É um dos melhores alunos da 2ª série.
E o tempo insistiu em andar. Rose conheceu um segundo rapaz. Namoraram por algum tempo e logo ela tornou a engravidar. Mais um pré-natal em que o exame de Aids não foi pedido. O namorado a deixou sozinha. Rafael nasceu em 2002, também de parto normal, no Hospital Universitário de Brasília (HUB). Até os nove meses de vida, era uma criança normal. Foi quando começaram as diarréias, febres e pneumonias. E uma tuberculose dilacerante. O primeiro exame revelou o mal. ;Se ele tinha, os médicos logo deduziram que eu tinha também;, ela conta.
A vida da moça mudaria completamente. Gabriel morava com a avó, na roça. Veio imediatamente para Brasília. O exame a que o filho mais velho, mesmo assintomático, foi submetido não deixou dúvida. Os três eram portadores do HIV. Rose viu sua vida ruir. E o mundo, de uma hora para outra, escapou de seus pés. Mas se encheu de força inexplicável e decidiu que lutaria pela vida dos filhos. Gabriel ainda não começou a tomar o coquetel. Está bem saudável.
Niomar Correa Pacheco, médica do Hospital Regional de Taguatinga (HRT), que cuida dos irmãos e entrou na comovente luta pela vida dos meninos, explica: ;Os exames de carga viral (que mede a quantidade de vírus) e o CD-4 (as células de defesa no organismo) estão em níveis aceitáveis. Ele nunca teve uma infecção séria, nunca precisou ficar internado. O único problema que tem é de crescimento, que estamos resolvendo com vitaminas e alimentação adequadas;.
Rafael, por sua vez, não teve a mesma sorte. Os sintomas da doença chegaram rápida e avassaladoramente. ;Ele chegou a ficar praticamente em estado vegetativo. Só respirava. Tentamos várias medicações, algumas exclusivas. Aos poucos, foi melhorando. Hoje, está bem melhor. Nem nós mesmos pensamos que ele reagisse bem;, admite a infectologista pediatra. E agora, para ficar melhor, precisa voltar a enxergar. Niomar não tem dúvida: ;Quando ele voltar a enxergar, vai andar;. Rose se emociona e chora: ;É o que mais quero na minha vida;.
Casamento
Os pais dos dois filhos de Rose, segundo ela mesma, não têm HIV. ;Eles fizeram o exame e eu vi;, conta. Ela acredita, porém, que se contaminou com o primeiro namorado, aquele com o qual se relacionou assim que chegou a Brasília e que, tempos depois, sumira. ;Soube que ele morreu;, ela diz. E ela seguiu sozinha, cuidando dela e tentando salvar os filhos. Um dia, num culto da igreja, Rose conheceu um rapaz da idade dela. Ela contou toda a verdade. ;Nunca poderia esconder isso nem colocar a vida dele em risco;, constata.
O rapaz, que não tem filhos, aceitou-a. E passou a cuidar dos filhos dela como se dele fossem. Trata Rose como princesa. Os meninos passaram a chamá-lo de pai. Ele ajuda Gabriel nas tarefas da escola. Vai às reuniões de pais. Depois do namoro, Rose e o rapaz, um ajudante de mecânico, resolveram se casar. Ela usou véu e grinalda. Ele, paletó cinza e sapato preto. Teve culto e festa. Álbum de casamento. Naquele dia, Rose se sentiu a mulher mais bonita e mais feliz do mundo. O rapaz usa camisinha e, a cada seis meses, faz exames de Aids. Todos os resultados foram negativos. ;Completamos dois anos de casados. Ele me mostrou que eu podia ser feliz, que ainda posso viver;, encanta-se ela, diante da possibilidade de uma nova vida.
Nesse momento, Gabriel anda de bicicleta na porta de casa. Ele ainda não entende a Aids. Nem sabe sobre o vírus que corre pelo seu corpo. ;A psicóloga da policlínica me disse que terá o momento certo pra ele saber;, explica Rose. Rafael ganhou um velotrol doado pela caridade alheia. Mesmo sem enxergar, passa o dia inteiro se arrastando nele. E ri, como se entendesse a vida. A mãe pede que ele dê um beijo no ;tio;. Ele pega a própria mão, leva até a boca e beija. Depois, na mais completa escuridão, procura o som de vozes e esboça alegria. É assim que aprendeu a se comunicar com o mundo. E assim aprendeu a viver. Há histórias que se contam e se escrevem com a sensação de que Deus ainda existe.
SOLIDARIEDADE
Quem puder ajudar o filho de Rose a operar de catarata pode ligar para 9296-2085
* Os nomes de mãe e filhos são fictícios
;Os médicos nunca pediram o teste de HIV. Eu vivia na roça, em Minas, não sabia que a gente podia pedir;
;Olho para os meus filhos e vejo que vale a pena continuar lutando. Deus pode fazer. E vai fazer por nós três;