postado em 09/11/2008 08:26
Com uma sinceridade paralisante, a médica do Hospital Universitário de Brasília (HUB) chegou perto da mãe e disse: ;Tudo que a gente podia fazer, já fizemos. Se seu filho voltar pra casa, será melhor. Vai morrer ao lado do conforto da família. Será mais digno;. O filho da mulher que acabara de ouvir a sentença tinha 1 ano e 7 meses de vida. E lutava, desde que nascera, para não morrer. Paulo Vinícius é portador de enteropatia crônica, uma rara doença que causa múltipla e gravíssima intolerância alimentar. Não podia comer quase nada. Desnutrido, pela falta de absorção de vitaminas, ferro e sais minerais, o menino não andava nem falava. Tinha crises constantes de diarréia, febre e pneumonia. Definhava a olhos vistos. Não tinha resistência a um grão de poeira. Nem leite materno podia tomar. E o mais grave: além da doença, tinha um mal maior ; a pobreza dilacerante que o mataria mais rapidamente. Aquela médica de fato tinha razão: Paulo Vinícius ia morrer.
Três dias depois do terrível prognóstico, o Correio contou o drama do menino. A reação da comunidade brasiliense foi comovente e imediata. A vida dele, pela primeira vez, ganhou esperança. Veio o tratamento médico com especialistas de fora de Brasília. No lugar onde havia um barraco de madeirite, foi erguida uma casa de verdade, construída pela solidariedade dos alunos de uma escola particular do Lago Sul. E chegou o único alimento que podia comer, além de batata cozida: carne de rã. À época, o quilo da carne custava R$ 25, duas vezes mais do que a mãe dele ganhava lavando roupas.
Era 5 de novembro de 1998. Dez anos se passaram. Paulo Vinícius chegou à pré-adolescência. Em abril, completará 12 anos. Cresceu, fortaleceu-se. Aprendeu a sorrir um sorriso maroto. Encantou-se por uma coleguinha de escola, alguns meses mais velha que ele. Não sabe como dizer pra ela que está apaixonado. Descobriu também que é bom jogando futebol no meio-de-campo. Às vezes, pede pra ser lateral. Ganhou até medalha de ouro num torneio recente. Virou moleque, de tênis encardido e boné com a aba virada para trás. E está aprendendo a nadar numa escolinha de Ceilândia. Tem se saído bem no estilo craw. A última vez que ficou internado foi há três anos.
Dez anos depois, a história precisa ser reescrita. E poderia começar assim: era uma vez um menininho que desafiou sombrios prognósticos médicos, enfrentou a morte e decidiu viver. Ele talvez ainda não tenha se dado conta disso. Mas cada vez que cruza a piscina a nado ou faz um drible nas partidas de futebol é a vida se impondo com toda intensidade. ;Eu tinha medo de muita coisa. Agora, tô mais corajoso;, ele revela, com ares de pré-adolescente que desbrava o mundo.
Primeiras palavras
Paulinho ; como é chamado pela família ; nasceu aparentemente saudável. É verdade que a mãe, Lucinete Fernandes de Oliveira, então com 31 anos, teve que ficar os últimos dois meses da gravidez internada, para se curar de uma anemia profunda. O bebê nasceu com 3,6kg e 41cm. Na primeira vez que mamou, o sinal de que alguma coisa estava errada. Teve uma forte reação alérgica: diarréia severa. Mas os médicos acharam que era normal. Depois, as reações aumentaram. Vieram febre e pneumonia.
Uma equipe médica chegou a suspeitar que o menino fosse portador do vírus HIV. Exames urgentes ; nele e na mãe ; foram realizados. E repetidos três vezes. Todos negativos. Nenhum deles tinha Aids. Depois, começaram a investigar outras causas. Exames complexos revelaram o diagnóstico definitivo: Paulinho tinha enteropatia crônica, a terrível intolerância alimentar que mata por desnutrição. E começou o tratamento com a equipe de alergistas do HUB.
Com sua história contada pelo Correio e a ajuda que recebeu da população de Brasília, o menino e a mãe viajaram para o Rio de Janeiro. Especialistas do Hospital do Fundão se interessaram pelo caso. E as idas à capital fluminense tornaram-se mensais. Exames de todos os tipos foram realizados. Depois, as viagens eram feitas a cada 90 dias. E, por último, de seis em seis meses. Enquanto isso, num lugar onde um dia existiu um barraco de madeirite, era construída uma casa de 80 metros quadrados, com três quartos, telhado colonial, piso de cerâmica, varanda, cozinha e banheiro.
O professor João Luiz Dias do Lago e os alunos do Colégio Mackenzie embrenharam-se numa verdadeira aula de solidariedade. Juntou-se a eles o fazendeiro Carlos Guedes, que também se sensibilizou com o drama do menino. Em mutirão, conseguiram pedreiros, tijolos, telhas, cimento, tintas. A carne de rã, oferecida pelo empresário Joaquim Barbosa, nunca mais faltou. Deram a Paulinho uma chance de vida.
Medicado, com alimentação adequada, ele começou, aos 2 anos, a dizer as primeiras palavras. Chamou mamãe e papai. Estava mais resistente, embora ainda voltasse com muita freqüência ao hospital. Mas engordou. Chegou aos 10kg. E aprendeu a sorrir. ;Foi quando eu comecei a ver que meu filho podia ser feliz;, lembra a mãe, hoje com 41 anos. E confessa: ;Teve dia que perdi a esperança. Não via luz no fim do túnel. Achava que o fim tava se aproximando;.
Feijão
Passaram-se os anos. Paulinho cresceu. Está chegando à adolescência.Mede 1,45m e pesa 36kg. Estuda, gosta de matemática, descobre um mundo novo a cada dia. E virou torcedor fanático do São Paulo. A casa no Recanto das Emas foi alugada. Há um ano, a família se mudou para um sobrado na QNM 4 de Ceilândia Norte. O pai, Elias Rosa Fernandes, 40, trabalha num supermercado. Lucinete abriu um pequeno mercadinho perto dali. As duas irmãs, Gracye Kelly, 14, e Thaís,13, desdobram-se em cuidados com o caçula. ;Às vezes, ele só quer comer coisa que não pode, como pizza, pão-de-queijo e cachorro-quente;, entrega Thaís.
Emocionada, Lucinete não disfarça os olhos marejados: ;É uma outra vida. É como se eu tivesse ganhado meu filho outra vez;. Elias, o pai, que passou por momentos difíceis e teve de vencer uma depressão, admite: ;Continua sendo uma luta muito grande. O tratamento dele fora daqui, as dificuldades que a gente passa. Mas é muito bom ver que o Paulinho está bem agora;.
O menino aproveita cada minuto da nova vida. Com o sistema imunológico fortalecido, começou a experimentar frango, peixe, arroz, alguns legumes e leite de soja. ;Agora, deu pra gostar de feijão. Tem dia que come e não sente nada;, conta a mãe. E a carne de rã? ;Enjoei. Comi muito;, ele diz, fazendo cara de quem comeu jiló. ;Inventei de tudo: sopa de carne de rã, caldo, bolinho, tudo. Ele aceita, mas não como antes;, emenda a mãe.
Não existe cura para a doença de Paulinho. Ele poderá ficar mais resistente, mas nunca comerá todas as coisas que deseja. No ano passado, foi examinado por um Ph.D. em gastroenterologia e alergia. O médico, que mora no Rio de Janeiro, soube do caso do menino por meio de relatos dos colegas, quando ainda estudava fora do país. No sofisticado consultório particular em Ipanema, Paulinho foi atendido de graça. O médico ficou satisfeito com o estado geral do garoto. Receitou nova dieta, vitaminas e exercícios físicos. Paulinho adorou a última parte.
Vendo o filho nadar na piscina como peixe afoito, Lucinete mais uma vez se comove: ;É a maior vitória da minha vida;. E entrega um segredinho do menino que tem se encantado por uma coleguinha da escola: ;Quando tem festa no colégio e vai ter lanche, ele me pede: ;Mãe, não diz pra ninguém que eu não posso comer. Só diz que eu não gosto, viu? Ninguém precisa saber que sou diferente;;.
E assim 10 anos se passaram desde que a primeira história foi contada. Ele não chegaria aos 2 anos, segundo as previsões médicas. Em abril, vai apagar a vela do 12º aniversário. E nunca se sentiu tão feliz em toda a vida. ;O que eu quero ser quando crescer? Acho que jogador de futebol;, responde. Paulinho pode ser o que quiser. A vida que insistiu em viver lhe deu permissão para isso. Paulo Vinícius é o melhor personagem de uma história que podia nem ter começado a ser escrita.