No finzinho de uma rua da 905 Norte, estão duas das muitas jóias que o artista plástico Athos Bulcão deixou para a posteridade. Azulejos brancos com detalhes em azul e verde enfeitam as paredes externas da capela do Centro Cultural Missionário (CCM). No refeitório, o padrão se repete em amarelo e laranja. ;É um tesouro da cidade que está sob nossa guarda;, comenta o padre canadense Guy Labonté, diretor do CCM. O espaço recebe religiosos estrangeiros que chegam para missões espirituais no Brasil.
Os painéis de Athos foram instalados no lugar no fim de 1995, quando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) construiu o prédio. Desta época, restam duas caixas de cada um dos padrões que são guardadas como ouro para necessidades de reposição. Para preservar as obras do artista plástico que coloriu Brasília, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) realizará um inventário completo dos painéis de Athos Bulcão. ;É um primeiro estudo que, depois, subsidiará o pedido de tombamento das obras mais representativas;, afirma o superintendente do Iphan do DF, Alfredo Gastal.
O edital de licitação para a realização do inventário deve ser publicado nos próximos dias e o trabalho concluído no ano que vem. ;É uma homenagem a Athos e também uma iniciativa para que o trabalho dele seja conservado;, completa Alfredo Gastal. O artista carioca radicado no DF morreu no último 31 de julho. Dono de múltiplas habilidades, Athos Bulcão veio para Brasília em 1958, animado pela proposta de Oscar Niemeyer de integrar arte e arquitetura.
Dúvidas
A Fundação Athos Bulcão acredita que pelo menos 200 obras do artista estão espalhadas pela cidade. ;O inventário é fundamental para sabermos ao certo quantas são. Ele trabalhou intensamente a vida inteira, mas não temos idéia se as obras foram mantidas pelos proprietários;, afirma Valéria Cabral, secretária executiva da Fundação Athos Bulcão.
O inventário também servirá para esclarecer dúvidas de autoria. ;Há coisas sobre as quais ele dizia: ;Pode ser que eu tenha feito;. Com a documentação, vamos ter certeza se são dele ou não;. Os painéis geométricos instalados nos halls de entrada dos edifícios da 308 Sul estão na lista de obras duvidosas. ;Pode ser dele, mas também pode ser de outro artista. Estamos investigando.; Esse não é o caso de um de seus painéis mais expressivos, o do Templo da Legião da Boa Vontade, em que peixes e estrelas coloridas representam o Espírito Santo e outros símbolos do cristianismo.
Em 2004, a Tríade Patrimônio realizou um levantamento sobre as obras de Athos Bulcão no DF. Na ocasião, 158 trabalhos foram enumerados, todos eles localizados no Plano Piloto. Além de decorar prédios públicos, como a Igrejinha (307/308 sul) e o Teatro Nacional, Athos também trabalhou na intervenção artística em edifícios particulares, sejam eles residenciais ou comerciais.
Segundo Lana Guimarães, da Tríade, as obras que estão à vista de todos estão em melhor estado de conservação do que as que ficam no interior de prédios públicos e privados. ;As obras do espaço público são mais fiscalizadas pela população, por isso estão mais bem-cuidadas;, comenta.
A expectativa é que o inventário sirva para conscientizar os administradores de prédios públicos e particulares sobre a importância do patrimônio que têm em mãos. ;Durante nosso trabalho, percebemos que eles têm pouca informação e muitas dúvidas sobre como manter os painéis;, relata. O levantamento da Tríade foi custeado com recursos do Fundo de Arte e Cultura (FAC) e contou com o apoio da Fundação Athos Bulcão. ;À medida que a população conhece e valoriza, o cuidado com as obras aumenta;, aposta Lana.
No Bloco F da 107 Norte, os moradores se esforçam para cuidar dos painéis de azulejos em azul e branco que decoram os halls de entrada e as escadarias. Construído no fim dos anos 60, o prédio foi desenhado pela arquiteta Mayumi Watanabe e segue a cartilha modernista da sobriedade de materiais. ;A simplicidade do edifício é encantadora. Adoro morar aqui;, afirma a subsíndica Lenita Nicoletti.
Os azulejos de Athos ganham destaque em meio ao vidro, ferro, cerâmica e concreto, únicos materiais usados para os acabamentos. Para conservá-los, os moradores contam com a assistência de um funcionário do Senado que cuida dos painéis que estão no Congresso Nacional. ;Quando os azulejos estão descolando, passamos fita crepe para evitar que caiam. Então, corremos para chamar o auxílio técnico;, relata Lenita Nicoletti. Outra precaução tomada pelo condomínio para proteger os painéis de Athos Bulcão foi exigir que os carregadores de mudança estejam sempre acompanhados de alguém do prédio. Enquanto a mobília sobe, os funcionários vão cuidando para que os móveis não dêem golpes nos preciosos azulejos. ;Pode até parecer uma medida antipática, mas foi uma das maneiras que encontramos para garantir a conservação;, explica Nicoletti.
O Bloco F da 107 Norte foi construído para professores da Universidade de Brasília que se instalavam na cidade. Hoje, todos os apartamentos já foram vendidos, a maioria para professores. ;A arquitetura, a amplitude e os azulejos de Athos são o diferencial do nosso prédio. É por isso que nos preocupamos;, afirma Lenita Nicoletti que mora no prédio desde 1979. Além de ponto turístico, o prédio será cenário de filme. É uma das locações do longa Insolação, de Felipe Hirsh.
O segredo dos azulejos
Qualquer um que esteja diante de um painel de azulejos de Athos Bulcão fica tentado a descobrir a lógica com a qual os azulejos foram colados. Nesta brincadeira, o olhar se perde pelo espaço preenchido com cores. ;Eu sempre me pergunto se existe lógica ou se foi aleatório;, comenta Osmar Favretto, administrador do CCM. Valéria Cabral, secretária-executiva da Fundação Athos Bulcão, esclarece a dúvida. Segundo ela, a partir de 1965, quando fez o painel de azulejos da Escola Classe da 408 Norte, Athos introduziu uma novidade em seu trabalho. ;Ele passou a permitir que os pedreiros interviessem nos painéis;.
Como? Ela explica que o artista dava instruções aos operários sobre o que não poderia ser feito ; coisas como fechar círculos ou agrupar em linhas grandes quantidades de azulejos iguais. Respeitando estas poucas regras, os operários criavam em cima dos painéis feitos pelo mestre. ;A preocupação dele era com que o aspecto também fosse vivido pelos pedreiros. Eles tinham a liberdade para intervir na obra dele, como Athos para intervir na obra do arquiteto;, explica Valéria.