O boom populacional de Brasília não estava nos traços de Lucio Costa, o urbanista que planejou a cidade. De 1980 para cá, a população brasileira cresceu 54,6%. O Distrito Federal, por sua vez, registrou, no mesmo período, um salto de 108,6%. Hoje já são quase 2,5 milhões de pessoas espremidas no DF. Se não bastasse, o Entorno também cresceu de maneira assustadora. Nos últimos sete anos, a região que engloba 19 municípios goianos e três mineiros teve a população aumentada em 16,5% ; o dobro da média observada no Brasil.
Por mais que não estivesse nos planos de quem a sonhou, Brasília virou cidade grande, com todos os efeitos colaterais que esse fenômeno causa. Aos 48 anos, a capital do país continua a atrair milhares de imigrantes. E os governos que se revezaram no poder nessas quase cinco décadas não deram conta de enfrentar a situação como deveriam. Pelo contrário, acabaram em alguns casos por estimular o crescimento desordenado. ;Essa situação é uma crítica direta a quem governa. O básico é investir em educação, saúde e trabalho, mas a opção tem sido distribuir lotes, alargar pistas e construir viadutos;, comentou geógrafo e pesquisador associado da
Universidade de Brasília (UnB) Aldo Paviani.
Com tanta gente chegando e vivendo no mesmo espaço, a cidade inchou. Aí faltaram renda, emprego, opções de lazer, infra-estrutura para todo mundo. Aos poucos, inevitavelmente, como em toda cidade grande, começaram a aparecer problemas como o desemprego e a violência.
A mato-grossense Marinalda Alves, 47 anos, veio para Brasília com o pai e quatro irmãos em 1972. A família alugou casa em Ceilândia e ali viveu durante 20 anos à espera de auxílio do governo. ;Fizemos inscrição para ganhar lote, mas nunca chegamos nem perto de receber nada;, lembrou. Até agosto, a mulher que tem uma história parecida com a de muita gente espalhada pelo DF, vivia em um terreno no Setor dos Pioneiros, na Vila Estrutural. Certo dia, ;um pessoal do governo; disse a ela que o local ficava perto de uma nascente e derrubou tudo o que conquistara em anos de trabalho. Hoje, mora em um lote deixado pelo marido: ;Se não fosse essa herança, eu seria uma sem-teto.
Brasília foi dura com Marinalda como foi com Carlos. O homem que diz não se lembrar nem do próprio sobrenome pediu, há 10 anos, demissão da sorveteria onde trabalhava em Patos de Minas (MG) e se mudou para Brasília. ;Eu queria viver melhor, com mais liberdade. No começo eu ficava nas cidades do Entorno, mas lá não dá para ganhar dinheiro com nada. Então, me mudei para a Esplanada e vigio carros;, contou Carlos, que mora na rua e ganha cerca R$ 30 por dia como flanelinha. ;Gasto tudo com picolé e comida. Não quero emprego, não quero casa, nem nada do governo. Só viver minha vida sem atrapalhar ninguém;, comentou.
Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) este mês mostraram, por exemplo, que a taxa de desemprego no DF está em 11,8%, contra 8,2% da média nacional. Na área da educação, a evasão escolar aumentou e o analfabetismo continua: 129 mil moradores do DF não sabem ler nem escrever. Brasília não é uma cidade blindada, não está livre das mazelas sociais. A série de reportagens que o Correio publica desde quarta-feira é mais uma mostra disso.
Os meninos e meninas que caíram na armadilha da exploração sexual infantil e do consumo de drogas na Rodoviária do Plano Piloto são de cidades do DF e do Entorno. O crescimento desordenado da região tem sua parcela de culpa pela situação a que chegaram essas crianças e adolescentes. A opinião de especialistas ouvidos pelo Correio é de que a vergonha no coração da capital federal revela a falta de cuidado com que os governos encararam o crescimento populacional. Agora, acreditam eles, é preciso correr contra o tempo, mas com um pensamento a médio e longo prazo.
O que precisa ficar claro, segundo a professora da Universidade de Brasília (UnB) Ana Maria Nogales, é que o imigrante, freqüentemente, acaba injustiçado nessa história. Brasília oferece boas oportunidades. Por isso, ainda atrai pessoas. ;O problema não está na população de imigrantes. Está na falta de estrutura para recebê-los;, ressaltou Ana Maria, doutora em demografia e coordenadora do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais da UnB. ;A educação é o segredo. Quanto mais educação, menos desemprego, menos criminalidade;, opinou a presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no DF, Estefânia Viveiros.
Quando a cearense Tereza de Souza, 48 anos, saiu de Fortaleza, aos 14 anos, com o primeiro grau incompleto e recém-casada, ela e o marido queriam emprego e casa própria. Ao chegar à capital federal, ela encontrou uma realidade bem diferente da que esperava. ;Nunca tive facilidade. Não consegui emprego com carteira assinada nem lugar para morar;, contou a mulher, que se separou do marido há 10 anos e foi morar na Estrutural. Para sustentar os quatro filhos, vende brincos e água em frente à Catedral Metropolitana de Brasília. ;Tem dia que dá para tirar até R$ 40, mas é raro. A vida aqui não é boa. Se eu pudesse, voltava hoje mesmo para minha terra;, disse.
A vida da baiana Aurinda Maria de Jesus, 44 anos, também não é simples. Ela sai da casa onde vive, em Luziânia (GO), todos os dias às 6h para ir a Taguatinga. Vende chapéus e guarda-chuvas no centro da cidade, em uma banca improvisada, e só volta para Goiás no fim da tarde. ;Procurei trabalho em vários lugares, mas sempre me chamavam de velha e diziam que não tinham lugar para mim. Agora me viro como posso;, relatou. ;Em Luziânia não vendo nada, se vendo é fiado. Assim, não consigo nem comer. Venho para o Distrito Federal para poder viver, aqui as pessoas compram mais.;
Durante muito tempo, Brasília sustentou o título de ;ilha da fantasia;. ;Pode até continuar sendo, mas é uma ilha para muito poucos;, disse o superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no DF, Alfredo Gastal.
;Isso já acabou. A ;ilha da fantasia; era um sonho que virou pesadelo;, emendou o presidente da Comissão de Direitos Sociais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), André Macarini. Mas experimente dizer isso para quem está no governo%u2026 ;Se o sonho acabar, acaba a vida;, afirmou a secretária de Desenvolvimento Social e Trabalho do DF, Eliana Pedrosa.