Era início da década de 1970. Os jornais lá no Piauí falavam da boniteza de Brasília. De como a cidade crescia. E de quanto ainda carecia de mão-de-obra. Um jovem marceneiro soube da notícia. Empolgou-se. Deixou a mulher e os quatro filhos e partiu para o sonho da terra prometida. Era assim que lá na distante Oeiras ele enxergava a capital que só conhecia por fotografia. Sacolejando num velho ônibus, o homem aqui desembarcou, em 1971, com desejo de mudar de vida. Prometera à família que assim que desse os buscaria.
E ele sabia bem o ofício. Aprendera com o pai, aos 12 anos, a cuidar da madeira como se gente fosse. Aprendeu as deixar belo o bruto. De suas mãos ágeis, nasceram armários, camas, estantes, cristaleiras, portas, janelas. Em 1972, o jovem obstinado cumpriu o que havia prometido: trouxe mulher e filhos. No Gama, cidade que escolheu para morar, a vida lhe parecia tranqüila. Trabalho nunca lhe faltou. E executava cada um como se cuidasse de ouro. Na verdade, a madeira sempre foi jóia para ele.
A vida seguiu. As crianças tomavam rumo. Cresceram. Deram-lhe netos. Ele e a mulher, católicos, passaram a fazer parte de grupos da igreja. Nada, nem o cansaço na marcenaria humilde, lhe tirava o prazer das obrigações religiosas. Raimundo Tomaz de Lima só queria viver. Pedia isso na comunhão. E assim vencia sua vida simples. Até que um dia, num átimo, essa mesma vida mudou completamente. E ele aprendeu, tempos depois, que o pra sempre, às vezes, pode não durar pra sempre. O marceneiro teve que reaprender a viver. E conviver com o que tinha. Passou a contar com apenas um braço para transformar madeira bruta em obra-de-arte.
Vinte de maio de 1992, 18h50. ;Era uma quarta-feira. Eu estava muito cansado e voltava do trabalho, no Plano Piloto. Montava uma cozinha, na 305 Sul;, ele fala. Perto do Catetinho, num acidente que até hoje não sabe como aconteceu, ele perdeu o controle do Fusca que dirigia. O carro capotou várias vezes. O marceneiro acordou três dias depois, no Hospital de Base (HBDF). Corria o risco de perder o olho esquerdo. E sabia, pelo menos sentia, que o braço esquerdo nunca mais seria o mesmo. E não foi. Meses de internação, cirurgias, um ano de fisioterapia. Nada adiantou. O braço continua imóvel, sem vida. Atrofiou. Raimundo teve medo. Chorou. Veio uma tristeza infinda. O homem que nunca havia parado de trabalhar sentiu depressão. E não entendeu por que chorava tanto? E por que, para sempre, nunca mais daria laço no cadarço dos sapatos surrados?
Recomeço
Uma vez, um amigo lhe disse que ele podia recomeçar. O marceneiro desconfiou. Duvidou da própria capacidade. Duvidou até do Deus em quem sempre confiou. Incentivado pela família, ele decidiu tentar. Dois anos e 11 meses depois do acidente que o mutilou, ele voltou a trabalhar. O padre lhe encomendou um trabalho, o mais importante do templo. Raimundo teve medo, mas aceitou o desafio. Usou apenas a mão direita. Sentiu-se como bebê que aprende a andar. Reaprendeu todo o processo de trabalho. Era como se engatinhasse. Demorou.
Calejou mais ainda a mão direita. Sem sentir o braço esquerdo, esbarrou-o em coisas. Até no fogo. Machucou-se e sangrou. ;Tinha dia que eu sentia tanta raiva, que perdia a paciência e queria morder a madeira.; E como sua melhor catarse, esculpiu o altar da Igreja São João Batista, no Gama. Trabalhou sem cessar durante um mês e meio para terminar a obra. Se usasse as duas mãos, faria em 15 dias. O padre, no dia em que viu o trabalho pronto, chamou-o de ;o mestre do altar;. Raimundo sentiu-se pleno.
Quando terminou a obra, o marceneiro ajoelhou-se diante dela e chorou. Foi o melhor choro de sua vida. Resolveu, naquele momento, que não pararia mais. ;Fiz uma promessa pra Deus e pra mim que não me entregaria.; Dali, saiu com outra encomenda: os armários da sacristia. E voltou a fazer camas, cadeiras, mesas, criados-mudos... Tudo sob encomenda. Voltou a ser o que era. ;O acidente mudou definitivamente minha vida para melhor. Passei a amar ainda mais o próximo;, ele reflete.
Na tarde de ontem, na Igreja Nossa Senhora da Paz, no Gama, Raimundo preparava um genuflexório (móvel usado nos altares das igrejas, aquele onde os noivos ajoelham). Passo a passo, confeccionava um pedaço da obra. Usava as pernas e até a boca para fazer as vezes do outro braço. Num momento de descontração, a mão esquerda, sem vida e estática, insistia em cair. Ele a pegava, apoiava-a sobre sua perna e dizia: ;Fica aí, mãozinha, cai não;.
Encantamento
E assim, hoje rindo, o marceneiro toca sua vida. Aos 62 anos, aprendeu a arte da transformação. E ele, que faz madeira crua virar altar, sabe bem o que é isso. De chinelão e calça surrada, Raimundo é homem simples. Tem voz mansa e fala da vida como se contasse um conto. Estudou até o segundo ano do ginásio e sonhou um único sonho: ser marceneiro, como o pai. Deixou o Piauí para dar um rumo melhor à família.
Mutilado, teve que reaprender seu ofício. Chorou. Pensou, antes do renascimento, que não havia mais sentido em continuar vivo. Um altar, desses onde homens de batina falam de Deus, salvou sua vida. ;Ele trabalha direto. Todo mundo fica abismado como ele consegue fazer as coisas;, encanta-se a faxineira da Igreja São João Batista Maria Conceição Silva, 70 anos. O secretário da paróquia, Pereira Bastos, 65, elogia: ;Ele é um exemplo pra todos nós. Depois, compara: ;Tem tanto jovem sadio, com as duas mãos perfeitas, mas não consegue fazer o que ele faz;.
O construtor de altares não ouve o que aquele homem diz sobre ele. Nesse momento, admira sua obra, como se fosse a primeira vez. Sente um orgulho danado. ;Aqui, me sinto em casa;, ele fala. Como menino feliz, confessa: ;Eu tô muito alegre. Posso mostrar o que fiz e o que ainda posso fazer. Um dia, quando estava no hospital, pensei que nunca mais fosse fazer nada na minha vida, que tudo tinha acabado. Deus é bom demais;.
Hoje, na Igreja Nossa Senhora da Paz, no Setor Oeste do Gama, ele vai dar acabamento aos genuflexórios. A pressa não lhe importa. Com a impotência do seu braço esquerdo e as limitações que a vida lhe impôs, Raimundo aprendeu a não ter mais pressa. Comovido, resume sua missão: ;Sei que tudo é passageiro, até a vida, mas meu trabalho ainda não terminou;. O marceneiro perdeu um braço, vital para sua profissão, mas ganhou a vida. Pela metade, dando forma e beleza à madeira bruta, tornou-se mais inteiro do que nunca. A vida é feita mesmo de contradição.