O telefone toca. Ligeirinho, alguém logo atende. Do outro lado da linha, um homem de voz grave e pausada anuncia: ;Portaria privativa do ministro da Justiça, bom dia!”. É ele, não tem dúvida. Avisado de que será personagem de uma matéria de jornal, ele pergunta de que estado é o jornalista que fala com ele do outro da linha. ;Ah, do Maranhão? Você sabe o que aconteceu em sua terra em 1840? Foi a Guerra dos Balaios...;. Da guerra, contando os mínimos detalhes, ele chega a Gonçalves Dias. ;Foi o maior poeta do Maranhão, nasceu em 1823 e morreu em 1864, vindo de Portugal, num naufrágio perto de São Luís. Escreveu contos e poesias...;
Passa um pouco das 8h. Mas ele já está lá, sentado na portaria, atento às chamadas. Chega cedo, dirigindo seu próprio carro, um poderoso Honda Accord V6 prata, teto solar, ano 2008. Tinindo de novo. De tão novo, o carrão reluz. O motorista, um homenzinho elegante e miudinho de 1,59m (ele jura que era mais alto, ;na mocidade;), estaciona o possante do lado da entrada privativa. Detalhe: a carteira de habilitação foi renovada há pouco. Vale até 2011.
Ele chega ao trabalho de terno cinza e sapatos escuros. Os cabelos, não de todo branco (jura de novo de pés juntos que não pinta), estão cuidadosamente penteados para trás. A meia combina com o cinto. O andar é vagaroso, de quem já aprendeu tudo da vida. Ou quase tudo. A falta de pressa talvez seja sabedoria. O olhar atento, paciência. E o bom humor, o segredo da vida.
O homem que atende o telefone na portaria privativa do Ministério da Justiça tem 94 anos. ;Noventa e quatro anos e três meses. Nasci no dia 10 de julho de 1914;, ele corrige, com orgulho incontido. Há mais de três décadas está ali, de segunda à sexta-feira, das 8h às 18h. ;Saio meio-dia para almoçar e volto às duas da tarde;, diz. Essa é, quando deveria ser completamente diferente, a agitada vida do sergipano de Propriá, João Pereira dos Santos.
Aos 94 anos, o homem miudinho ; pelo menos no tamanho ; ainda se agiganta. ;Só vou parar no dia que meu raciocínio não mais corresponder às minhas expectativas. Aí, vou embora. Ficarei em casa até o dia em que o Criador quiser me levar;, ele planeja, como se programasse dar mais uma volta no seu carro possante.
Há dois meses, João se superou. Contratou aulas particulares de informática. Comprou um notebook. Ainda se perde em alguns comandos, mas o básico começa a fazer. Tem até e-mail. O agente da portaria privativa do ministro é um homem que, aos poucos, tem aderido ao mundo digital. ;A internet é fabulosa pra se fazer pesquisa e conhecer o mundo. Mas com ela o povo tem esquecido o português;, ele comenta, preocupado.
Aos 94 anos, João Pereira ; ou seu Pereira, como é conhecido no ministério ; é o homem mais idoso do DF a trabalhar com carteira assinada. ;Talvez do Brasil;, ele se empolga. ;Me aposentei há 40 anos, em 1968. Não quis ficar em casa vendo a vida passar por mim. Gosto de movimento, de participar das coisas, de me sentir útil;, admite o homem que brincou com o tempo. E fez dele cúmplice perfeito. João e o tempo tornaram-se amigos. Tão amigos que ele filosofa, usando metáforas para o sentido da vida: ;Você sabe, meu rapaz, onde o sol nasce e se põe. Um homem de 94 anos sabe que está quase chegando ao poente?;. Melhor deixar essa conversa de poente pra lá...
Persistência
João é homem de resistência. Desde cedo, aprendeu a pelejar na vida. O pai, quando o menino tinha 10 anos, saiu de casa. Coube a João, o mais velho dos filhos, ajudar a mãe no sustento dos seis irmãos. Com apoio de um tio, mudou-se para Aracaju. Aos 19 anos, em 1933, entrou no Exército. Era a profissão que o rapaz com curso primário teria. Ainda naquele ano, foi transferido para o Rio de Janeiro pra servir no então Ministério da Guerra. O ministro era o general Eurico Gaspar Dutra. Ao ministro, coube a missão de escolher seis soldados que iriam servir na seleta guarda presidencial. Entre os soldados, lá estava o miudinho sergipano. ;Tive a honra de servir ao presidente Getúlio Vargas e toda sua família;, envaidece-se.
Em 1940, ele pediu baixa do Exército. Mas João nunca deu ponto sem nó. Havia arrumado outro emprego. Seria motorista particular de Viriato Dorneles Vargas, irmão de Getúlio. Em 1947, levado pelo filho de Viriato, chegou à Câmara dos Deputados, ainda no Rio de Janeiro. Era contínuo, depois virou motorista. Em 1960, com a transferência da capital para Brasília, João desembarcou com a mulher e os quatro filhos. Oito anos depois, aposentou-se como inspetor de polícia legislativa federal da Câmara dos Deputados. ;Recebo um dinheirinho bom. Dá pra viver;, despista.
Mas ele não queria ficar em casa. Virou taxista. Rodou Brasília. Ouviu histórias, dramas, piadas. Ajudou gente. Fez amigos. Da janela do seu táxi, viu a cidade crescer. Em 1977, por meio de uma firma terceirizada, foi contratado como agente de portaria do Ministério da Justiça. Dava bom dia ao ministro Armando Falcão.
Voltou a usar terno e gravata. A andar em corredores acarpetados. Conviver com o poder e ver gente importante, que decidia ; e decide ; os rumos do país. ;Sempre cumpri com meus deveres e me comportei com sabedoria;, ele diz, com discrição espartana. Como é se comportar com sabedoria? Ele responde, ajeitando os cabelos para trás: ;Tenho olhos, mas não vejo; tenho boca, mas não falo e tenho ouvidos, mas não escuto;. E foi assim, ;com tanta sabedoria;, que ele viu passar diante de seus olhos que não vêem, dos seus ouvidos que não ouvem e de sua boca que não fala, mais de 20 ministros. Nem sob tortura fala de qualquer um deles. Ganha R$ 1,3 mil para ser surdo, mudo e cego.
Doutores
João pelejou tanto que, mesmo sem muito estudo (;queria povoar todo o mundo com escolas;), fez questão de formar os quatro filhos. Orgulhosíssimo, ele enumera: ;Tenho um médico, uma jornalista, um autônomo e um professor de inglês, que é assessor da Câmara Legislativa. Todos são um poço de inteligência;. Separou-se da primeira mulher e casou-se, há 33 anos, com sua Terezinha Lucas Evangelista, hoje com 68 anos, o amor de sua vida. Todo dia, na hora do almoço, ele a pega no Hospital Regional da Asa Norte (Hran), onde a mulher faz trabalhos voluntários. Vão se aconchegar em casa, na 209 Norte. ;Ela me ajuda, me faz companhia. É minha grande companheira.; E sai da condição de entrevistado: ;Quantos anos você tem? É casado? Quando for, vai entender isso;.
Em todo o ministério ; e não só na portaria privativa, lugar de engravatados que chegam em carros oficiais ; João, o miudinho, arranca elogios. Na recepção, longe da entrada privativa, uma moça diz: ;Seu Pereira é patrimônio daqui. Tá sempre pronto pra ajudar as pessoas;. Outra se encanta com a lucidez dele: ;É difícil chegar a essa idade com a memória tão perfeita;.
País melhor
Os agentes de vigilância que trabalham diretamente com ele não lhe poupam elogios. ;Ele é amigo pra todas as horas;, atesta José de Ribamar dos Santos, 47. João Batista Severino, 55, emenda: ;É trabalhador;. Epitácio Durão, 50, virou fã e compadre: ;É uma pessoa espetacular. A memória é invejável, guarda as coisas com facilidade. Sabe tudo que a gente pergunta;. João ouve seus colegas falarem. Disfarça a emoção e muda de assunto. Fala do tempo, do calor, da secura insuportável, da vista de sua portaria privativa para a Esplanada e o Congresso Nacional. E fala do Brasil: ;Acredito que esse país tá no caminho certo. Tenho esperança. As coisas mudaram;. No dia em que completou 94 anos, o ministro Tarso Genro o chamou ao seu gabinete. Deu-lhe uma gravata. Todos os funcionários estavam lá. Cantaram parabéns. João se comoveu.
Todos os dias o homem de 94 anos acorda às 5h da manhã. Pedala na bicicleta ergométrica de casa. ;Fico uns 15 minutos;, ele garante, com cara de atleta. Depois, vai para o banho, toma café e segue para o trabalho. Chega com disposição de menino. Sente-se vivo. Doença? ;Não tenho nem catarata. Só entrei em hospital duas vezes: em 1936, quando operei de hérnia, e em 1940, para retirar o apêndice. Nunca bebi nem fumei. Como de tudo, só não exagero à noite. Acho que isso me ajudou a chegar a essa idade. E sabe de uma coisa? Eu sou muito feliz, gosto da vida, gosto de acordar e ver a vida do lado de fora.;
Talvez o segredo da felicidade de João, o miudinho que virou gigante, foi ter simplificado a vida e fazer dela, da vida que segurou com força de leão, uma grande aliada. E assim o tempo ; aquele que envelhece, deteriora, apaga a lucidez e faz esquecer emoções ; virou um detalhe. ;Noventa e quatro anos? Às vezes, me acho um menino.; Vai ver, João é mesmo um grande menino miudinho. Há histórias que têm gosto de vida boa. A de João tem.