Um homem de 60 anos entra no consultório e se depara com aquela jovem médica na cadeira de rodas. Ele havia tirado um tumor benigno da coluna vertebral e caminhava com as próprias pernas. A médica, com cara de menina e olhar atento, ouve as queixas, as dores e as incertezas daquele paciente. Ouve a desesperança do homem diante do que passara. Minutos depois, ele sai dali e comenta com uma pessoa que aguardava do lado de fora: ;Pensei que minha vida estivesse acabada. Quando vi essa médica, mudei o pensamento;. O homem foi embora. A médica, empurrando a própria cadeira, pede para mais um paciente entrar. Há muita gente na fila daquele hospital.
Uma outra paciente chega ao consultório. Espanta-se ao ver aquele moça tão jovem. Arregala o olho. Espia, espia de novo. Cochicha com ela mesma: ;Será que ela é médica, meu Deus? Entrei na sala errada?;. Depois, embaraçada, cheia de dedos e cerimoniosa, pergunta à moça de jaleco branco: ;A senhora é médica de verdade?; Foram dois sustos. Primeiro, a mulher esperava encontrar uma pessoa mais velha. Depois, a médica usava cadeira de rodas. E, para aquela mulher, médicos estão acima do bem e do mal. De jalecos brancos, tornam-se deuses. Não adoecem. Não sentem dor. Muito menos andam em cadeira de rodas. Desconfiada, ela se deixa atender. Sai do consultório maravilhada. E acredita que nem tudo é exatamente como parece. Tampouco aquelas pessoas que usam estetoscópio são deuses de jaleco branco. Às vezes, há coisas que só se aprende no supetão.
É fim do expediente. Empurrando suas pernas emprestadas, a médica de sorriso bonito e cabelos negros deixa o hospital mais movimentado do DF. O dia foi intenso. Doze longas horas de plantão no pronto-socorro. Ela dirige o carro, adaptado, até a casa onde mora, no Condomínio Solar Brasília, na região do Lago Sul. A casa, espaçosa, foi feita para que ande sem esbarrar em nada. A moça chega exausta, mas intimamente está radiante. ;É prazeroso poder fazer algo por alguém. Foi por isso que escolhi a medicina, gosto do contato com o paciente;, ela diz.
O que tem de excepcional em médicos usarem cadeira de rodas? Na verdade, nada. Rigorosamente nada. Mas quando a história se faz de uma vontade enorme de viver, de desafio diário e de uma superação comovida, tudo passa a ser muito. É o caso da jovem médica ; quase menina ; Natália Sousa Gonçalves, de 23 anos. E ela olha tudo que passou e diz, com um sorriso que contagia quem está por perto: ;Felicidade é você estar bem com o que você tem. É se ver e se aceitar como você é. E, claro, se realizar, pessoal e profissionalmente;.
O inesperado
Voltemos no tempo, não muito tempo assim. Ainda menininha, em meados dos anos 1980, Natália queria ser médica. Suas bonecas viravam pacientes. Dava-lhes conselho e dizia que logo elas sarariam. Natália gostava de cuidar. De proteger. E assim ela corria pela casa e inventava brincadeiras. O pai, militar do Exército, mudou-se de Fortaleza para Marabá (PA). E lá a menina continuou cuidando de suas bonecas. Dizia que, quando crescesse, ia ser médica. Era como respirar.
Natália tinha 5 anos. Era 22 de abril de 1990, festa de aniversário de um amiguinho dela, na nova cidade para onde a família se mudara havia meses. As crianças corriam pela casa do aniversariante. Algumas ajudavam a colocar os docinhos na mesa. Natália fazia as duas coisas. De repente, ela sentiu uma cãibra. Foi tão forte, que parou de andar. Imediatamente, os pais a levaram para o hospital da cidade. Lá, os médicos desconfiaram que o caso era grave. A menina para Belém. Primeira suspeita: poliomielite. Como? As vacinas estavam rigorosamente em dia. Os exames não confirmaram. Exames foram levados para São Paulo. Vinte dias depois, ainda internada e sem sentir as pernas, veio o terrível diagnóstico. Natália tinha mielite transversa (MT) ; síndrome neurológica causada por uma inflamação na medula espinhal. As causas são várias: vírus, depois de uma vacina ou até mesmo doença auto-imune. A doença é incomum, mas não rara. Segundo estimativas, a incidência anual varia entre uma e cinco pessoas por 1 milhão na população.
Os pais não acreditaram no que ouviram. Mas ainda todos contaram com a sorte. Nos primeiros quatros dias depois do primeiro sinal, a doença poderia ter evoluído e a lesão atingido a coluna cervical. Natália poderia ter ficado tetraplégica, movimentando apenas o pescoço. Aos 5 anos de idade, apenas uma certeza: a menina nunca mais andaria. A causa da mielite, segundo milhares de exames realizados na época, foi viral. Até hoje, entretanto, os médicos não chegaram à conclusão do tipo de vírus.
Isso, na verdade, agora não faz mais muita diferença para a doutora Natália. O que importa são as lições que ela aprendeu com o inesperado. E a vida que se seguiu depois da mudança radical. ;Aos cinco anos, não compreendia muito o que acontecia, mas nunca deixei de fazer as coisas que queria;, ela lembra. Ela voltou à escola. Adorava contar para os outros que já sabia ler e escrever. E nunca deixou de aprontar no recreio.
Aulas na maca
Começaram as sessões de fisioterapia. A dedicação dos pais, da irmã mais velha e das irmãs gêmeas mais novas. Quando Natália tinha 12 anos, mais uma transferência do pai militar. A família chega a Brasília. Aqui, consulta na Rede Sarah. Diagnóstico confirmado. E aquilo que se sabia: a paralisia era de fato irreversível. Na cadeira de rodas, a menina ganhou liberdade. Estudou, passeou, namorou, se divertiu. Jogou basquete. Foi ao carnaval de Salvador. ;Nada de camarote. Sempre atrás dos trios;, ela conta. E afirma, sem hesitar: ;Sou superfeliz, desencanada;.
A adolescente de cadeira de rodas terminou o ensino fundamental. Chegou ao médio. Fez o Programa de Avaliação Seriada (PAS), da Universidade de Brasília (UnB). Foi aprovada com louvor para medicina. A menina que fazia suas bonecas de pacientes iria estudar as dores de gente. Iria lutar pela vida. Nos dois primeiros anos da faculdade, assistiu a todas as aulas em maca ou na mesa do professor, onde era colocado um pequeno colchão. Como estudara muito para o vestibular e passou muito tempo sentada, desenvolveu uma enorme e complicada escara (feridas na região das nádegas).
Ainda assim, ela não desistiu. ;Eu era a aluna mais folgada da faculdade, afinal, só eu assistia às aulas deitada;, ela diz, com um sorriso encantador. Foram dois anos assim. Natália venceu as escaras. Venceu as dificuldades de acesso da universidade, do hospital onde estagiou, os elevadores sempre quebrados (subia e descia carregada), a falta de rampas da cidade. E realizou o maior sonho de sua vida: virou médica.
Em janeiro deste ano, formou-se. Na foto da formatura, ela bem na frente na sua cadeira de rodas. Logo prestou exames rigorosos para residência. Passou no Rio de Janeiro, Goiânia e em Brasília. Aqui, foi chamada para o Hospital de Base (HBDF) e o Hospital das Forças Armadas (HFA). Preferiu o HBDF, na clínica médica. A residente já passou pela gastroenterologia e pela nefrologia. Está em férias, mas na segunda-feira retornará ao hospital. Vai para a hematologia. Na tarde de ontem, foi se encontrar com quatro amigas médicas, no Pontão do Lago Sul. ;A gente vai rir e colocar a conversa em dia;, ela informa.
Em casa, o pai, José Araújo Gonçalves, 55, embarga a voz ao falar da filha: ;Eu sempre fico assim quando falo dela. A Natália é fantástica. Supera dia a dia os obstáculos;. A mãe, Cleide, 50, emenda: ;É a nossa guerreira;. A amiga residente Thaís de Almeida, 26, se extasia: ;Ela não tem limitação, é independente, surpreendente, uma excelente médica;. Na tarde de ontem, enquanto empurrava sua cadeira de roda, ela fez uma confidencia: ;Quero ter dois filhos;. E o namorado? ;A gente tá bem;. O nome? É segredo. ;Só posso adiantar que ele é jornalista e estamos juntos há dois meses.; No final da conversa, ela diz, às gargalhadas: ;Vê lá o que você vai escrever de mim. Vou ler tudinho, viu?; E parte, feliz da vida, empurrando a cadeira, ao encontro das amigas. A história de Natália é tão boa que, depois de ouvir, se tem vontade de sair contando por aí.