Jornal Correio Braziliense

Cidades

Manuscritos de dor: a história da menina de 14 anos violentada pelo pai

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A escritora Anaïs Nin escrevia para melhorar o mundo. A menina dessa reportagem escreve sobre o pior dos mundos e tenta exorcizá-lo com as palavras. Está com 15 anos, é linda, quer ser modelo, mas não pode mostrar o rosto. Nem no jornal nem em lugar nenhum. Teme ser achada, violentada e morta pelo carrasco que a estuprou durante dois anos. Ele é seu pai. Ela tinha apenas 14 anos quando aconteceu pela primeira vez. Tal e qual um monstro, o homem pôs o filho menor para dormir, colocou um filme pornográfico na televisão e, com uma faca na mão, obrigou a filha a assistir. Ela terminou a noite sangrando sobre a cama da mãe, que estava hospitalizada. A mãe chegou no dia seguinte, viu as manchas no lençol e os hematomas no corpo da criança, mas o marido lhe contou que a garota tomara um tombo. Temerosa por seu destino e pelo da mãe, a menina se calou. O silêncio e o medo a levaram outras vezes para a alcova de seu pai. Da faca ele passou para a espingarda. O resto da história está no texto abaixo, todo escrito pela pequena brasileira que é muito mais do que uma vítima. ;Sou uma sonhadora teimosa;, diz a personagem do segundo capítulo da série de reportagens Diários da Maldade, com textos assinados por meninas e moças violentadas. Dona de letra bonita, a autora de hoje escreve bem. Sua escrita, sem vírgula, sem pausas, se parece com sua vida e revela o que os especialistas apontam como sinais da violência na caligrafia. Goiana, ela sente saudades do irmão menor e cresce exilada numa instituição que acolhe mulheres e crianças castigadas pela perversidade. Na entrada, atrás de uma grade, lê-se em letras garrafais a sina de todas as moradoras do lugar: ;Esta porta é um símbolo. Atrás dela estão mulheres e crianças inocentes vítimas da violência. Seus espancadores e estupradores estão em liberdade apoiados pelas leis e pelas autoridades.; A frase reflete a história da menina que assina os manuscritos desta reportagem. Seu algoz permanece foragido da polícia. ;É a prova de que essas meninas não precisam de pena. Precisam de respeito, de justiça;, diz a pedagoga Maria Cecília Machado, diretora do abrigo onde vive a menina. ;O abuso é uma chaga que acompanha a mulher por toda a vida, macula a sexualidade e, num ciclo perverso, atrai abusadores;, emenda a pedagoga, enquanto do outro lado da sala, a jovem sonhadora escreve o pesadelo de seu dia: ;Hoje foi horrível na escola, um menino tentou mexer comigo;, anota e, entristecida, mostra o verso que diz ;ser o mais lindo que já leu;: ;Quando me veres (sic) sorrindo não pense que estou contente, pois nem sempre o sorriso diz o que o coração sente.; Identidade ;Oi, tenho 14 anos, nasci no interior de Goiás, mas moro num abrigo em Goiânia. Eu tenho os cabelos castanhos escuros, sou morena. Eu não quero sofrer mais na minha vida.; Minha história "Ela teve que ser internada. Meu pai, eu e meu irmão ficamos em casa. Anoiteceu, o meu irmão dormiu, o meu pai colocou um filme de pornografia, eu nunca tinha visto um filme desses. Meu pai me fez ver na marra. Ele ficava falando coisas no meu ouvido que eu não gostava, comecei a chorar para sair dali, eu queria dormir. Então meu pai falou que se eu não fizesse sexo com ele, ele iria me matar. Eu então fiquei com muito, mas com muito medo mesmo." Pára, pai, pára, pai! "Ele começou a tirar minha roupa e foi me beijando, e eu cada vez mais assustada, e ele continuava me ameaçando com uma faca. Eu chorava e não podia gritar senão ele me matava. Eu fiquei com muito nojo, quase vomitei de tanto nojo, eu estava chorando muito, então ele falou que era pra eu parar de chorar senão ele me iria me bater. Fiquei com tanto medo dele que parei de chorar. Ele colocou o pênis nas minhas partes pessoais e enfiou com toda a raiva. Então começou a sangrar muito, muito mesmo. Nessa hora, ele começou a me tirar da cama. Ele tinha ficado com medo de alguém chegar. Ele colocou água para me banhar." Sangue ;No outro dia, minha mãe chegou em casa e perguntou que lençóis sujos eram aqueles. Eu não sabia o que falar. Então, ela ficou muito preocupada e gritou pelo meu pai, que estava capinando. Meu pai inventou que eu caí e bati na casinha do cachorro. Minha mãe me levou no médico, ele me deu dois pontos, eu fiquei dois dias sem ir à escola. Minha mãe ficou preocupada. Toda hora ela me perguntava o que tinha acontecido de verdade e eu falava que tinha caído do balanço e me machucado. Ela desconfiava, mas não descobriu. Passou um bom tempo sem o meu pai me perturbar. Mas um dia ela foi para a igreja com meu irmão. Eu fiquei em casa com meu pai e ele outra vez abusou de mim. Eu comecei a chorar de medo, não sabia o que fazer para acabar com aquilo tudo.; Espingarda ;E passou a me ameaçar com uma espingarda, com facão, com foice. Eu já não sabia mais o que fazer. Minha vida estava desmoronando, eu já estava no meu fim. Minha mãe adoeceu de novo e teve que vir para Goiânia. Eu fiquei de novo com meu pai e meu irmão. Ele me levou para o mato, me ameaçou, falou que era pra eu dizer que tinha sido o pastor da igreja ou meu irmão. Quando minha mãe chegou, ele falou pra ela que o pastor tinha abusado de mim. Meu pai saiu para o trabalho e minha mãe veio me perguntar se tinha sido o pastor mesmo. Nisso eu já estava com 13 anos. Eu resolvi contar a pura verdade para minha mãe. Ela estava muito doente e depois que eu contei para ela, ela foi adoecendo cada vez mais e veio de novo para Goiânia. Mas dessa vez ela me trouxe. Meu irmão ficou com meu pai. Foi a última vez que eu vi meu irmão.; Funeral ;Minha mãe morreu no dia 9 de julho do ano passado. Eu entrei no abrigo no dia 10 de julho. Eu nem fui ao enterro dela, por isso às vezes tenho a sensação de que ela ainda está viva. Mas certeza de uma coisa eu tenho: eu a amo muito. Não vejo meu irmão há um ano, não tenho notícias dele, não sei como ele está, não sei onde ele vive, mas ele mora no fundo do meu coração. Eu sinto muita saudade dele e da minha mãe também. E de tudo que eu tinha. Agora, estou vivendo uma nova vida aqui. No final do ano, eu vou embora. Vou morar com a mãe da minha mãe. Espero que seja bom lá. Espero que gostem de mim.;