A capital do Brasil não tem regras básicas para garantir a ordem urbanística da cidade nem normas gerais para assegurar uma convivência harmoniosa entre os brasilienses. Ao contrário da maioria das grandes cidades do país, Brasília não possui até hoje um Código de Posturas. Nos municípios que já dispõem dessa legislação, há horários definidos para funcionamento do comércio e da indústria, para a coleta de lixo e para carga e descarga de mercadorias. O código disciplina ainda como deve ser feita a manutenção do espaço público e dá diretrizes para que haja uma boa relação entre vizinhos, com respeito ao silêncio nos locais e horários predeterminados.
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Para tentar reduzir os prejuízos que a falta da legislação já causou à cidade, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Seduma) trabalha para que Brasília finalmente tenha seu Código de Posturas, depois de 48 anos sem regras de convívio urbano. A legislação será elaborada com recursos do Banco Mundial, dentro do programa Brasília Sustentável, que financia iniciativas com objetivo de melhorar o urbanismo das cidades. A licitação do projeto será feita ainda este ano e ele deve estar pronto em 1 ano e meio.
Se a legislação estivesse em vigor, a advogada Rafaela Mata, 24 anos, provavelmente não teria problemas com o barulho que a impede de dormir. Moradora da 308 norte, todos os dias ela acorda cedo, antes mesmo do toque do despertador. A música vinda de uma igreja ao lado do prédio onde Rafaela mora pode ser ouvida do apartamento no quarto andar, com as janelas fechadas. ;Eles usam bateria, guitarra e gritam muito. Não tenho nada contra a celebração. Porém, acho um suplício começar o dia assustada. Não poder descansar dentro da própria casa é o cúmulo;, indigna-se.
Há seis meses, o sossego dos moradores da 309 Norte é ameaçado pela presença de um posto de combustíveis instalado no local. No estabelecimento, funciona um lava a jato e uma loja de conveniência aberta 24 horas por dia. O síndico do Bloco O, Alcino Marçal Almeida, 61 anos, conta que os moradores do prédio reclamam freqüentemente do barulho. O maior causador de transtornos é um secador de carros. De acordo com Alcino, o ruído da máquina é muito alto e se repete diversas vezes das 8h às 18h, de segunda-feira a sábado. ;Os jatos de água ainda são suportáveis. Mas o secador chega a assustar as pessoas que estão dormindo quando o serviço começa a ser feito;, conta o síndico.
Comunidade
Cada município elabora uma legislação própria, de acordo com a quantidade de habitantes e as características físicas e culturais da cidade. ;Não é possível pegar o Código de Posturas de um município e tentar copiar para aplicá-lo em outro local. Ele tem que estar de acordo com a cultura local e precisa ser discutido com a comunidade;, explica o secretário de desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, Cássio Taniguchi.
Em Vitória, capital do Espírito Santo, por exemplo, o Código de Posturas estabelece um padrão para a coleta de lixo e para a colocação de lixeiras na cidade, além de proibir o corte de árvores e o uso de carroças nas vias de trânsito rápido. A legislação é bem detalhista e determina que casas de espetáculos com capacidade de público acima de 2 mil pessoas devem abrir as portas para o público pelo menos duas horas antes do início do show. A lei ainda obriga que haja pelo menos uma farmácia de plantão em cada bairro.
Pirenópolis, cidade goiana muito freqüentada pelos brasilienses, também tem seu Código de Posturas. A lei determina que em caso de algazarras em bares ou restaurantes, o proprietário pode ser multado e proíbe o uso de fogos de artifício em locais públicos ou em janelas e portas voltados para áreas públicas. O código obriga ainda os proprietários de terrenos a extinguir possíveis formigueiros que surgirem dentro de sua propriedade.
Em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, o Código de Posturas chega a definir os produtos que devem ser servidos ao público por lanchonetes. A lei proíbe que esses estabelecimentos usem recipientes de maionese ou mostarda que possam ser devassados. Os molhos só podem ser servidos em embalagens lacradas a vácuo.
No caso de Brasília, o Código de Posturas deverá definir os níveis de ruídos permitidos e proibir as pessoas a manter atividades que prejudiquem os vizinhos. ;O Código de Posturas vai possibilitar a regulamentação da atividades cotidianas do Distrito Federal, como os horários de início e final de expedientes e horários de carga e descarga em cada região, além de definir níveis de ruídos toleráveis em cada horário. É importante que Brasília tenha um Código de Posturas para que haja civilidade;, explica o secretário Cássio Taniguchi. ;Vamos buscar interessados em elaborar o código para que ele fique pronto em, no máximo, 18 meses.;
Lugar para caçambas
Outro problema que deve ser resolvido com a aprovação do Código de Posturas é a falta de locais específicos para a colocação de caçambas de entulho. Hoje, esses contêineres são colocados em vagas de estacionamento, muitas vezes destinadas a portadores de necessidades especiais. A empresária Tânai Jaccoud, 45 anos, moradora do Lago Sul, reclama: ;Os comerciantes podem encontrar um bom local para os contêineres. O que não pode é a população sair prejudicada desse jeito;, expõe. Ela conta que já teve o carro amassado, quando tentou pôr o veículo ao lado de uma caçamba. ;O responsável chegou para retirá-la e quase levou meu carro junto. O estrago foi grande;, reclama.
Especialistas criticam a falta de um Código de Posturas para Brasília e garantem que o fato de a cidade ainda não ter essa legislação causou prejuízos urbanísticos, como construções que ferem o tombamento da capital federal. O professor de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília Frederico Flósculo explica que o código é essencial. ;Um caso notável de problemas urbanos surgidos pela falta do Código foi a invasão do comércio local. Ela surgiu pela ausência total de posturas urbanas. Nesse aspecto, Brasília é mais atrasada do que muitas cidades pobres ou pequenas;, aponta o especialista. ;O código é como um contrato social, que vai definir as regras para os cidadãos que vivem em uma determinada cidade;, acrescenta Flósculo.
O arquiteto Igor Campos, presidente do Instituto Brasileiro de Arquitetos (IAB-DF), explica a importância dessa legislação. ;É um instrumento essencial de ordenação das cidades. Constitui princípios claros e objetivos que estabelecem os limites e relações entre os domínios público e privado. Revela ainda o nível e o grau de educação e civilidade da sociedade;, garante o arquiteto. ;Brasília, Patrimônio Cultural da Humanidade exige, antes de tudo, muito respeito.;