Correio Braziliense
postado em 27/07/2020 06:02
A ciência muda. E muda em velocidade mais acelerada quando pouco se conhece sobre determinado tema. Por isso, os avanços precisam ser rápidos e eficientes para salvar vidas. Esse é o contexto da pandemia do novo coronavírus. A cada dia, surgem atualizações dos efeitos de medicamentos no tratamento de infectados, avanços nas buscas pela vacinas, novas informações capazes de modificar o entendimento do processo de imunização. Mais dúvidas. Traduzidas em novos desafios para os pesquisadores, gestores e sociedade.
“Estamos vendo como a ciência funciona em 'tempo real', aprendendo, a todo o momento, tanto sobre as características biológicas do novo coronavírus quanto sobre como a doença causada por ele se espalha na população”, afirma o pesquisador José Alexandre Diniz Filho, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Diniz coordena um dos diversos grupos de pesquisa brasileira que, diante do avanço da pandemia, tentam antecipar a trajetória da doença e avaliar a demanda hospitalar e a letalidade, usando modelos matemáticos e computacionais. “Embora métodos estatísticos simples possam ser utilizados para prever esses eventos em curto intervalo de tempo (15 ou 30 dias), isso não é tão informativo para o planejamento das políticas públicas. Por outro lado, pensar em projeções de longo prazo cria uma série de desafios”, problematiza o pesquisador.
A história natural da doença, o modo e a intensidade de transmissão, o papel de cada faixa etária e de cada grupo populacional nos contextos socioeconômicos são algumas das variantes que impactam na atualização dos modelos e devem ser levadas em consideração, como ressalta o pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Mauro Sanchez. “Quando você incorpora fatores sociais, econômicos e outros nas projeções, somando seus efeitos ao que já se sabe sobre a atuação do vírus em si, você está fazendo ciência de forma adequada e responsável. O que não devemos fazer é tomar decisões, com consequências importantes para a saúde pública, sem embasamento científico”, destaca.
Sanchez é membro do Portal Covid-19 Brasil, plataforma elaborada por pesquisadores da UnB e da Universidade de São Paulo (USP). A iniciativa debruça-se em fazer projeções do novo coronavírus no país, com o objetivo de contribuir no enfrentamento da pandemia e, para isso, precisa ser diariamente atualizada. “A cada nova descoberta, com certeza, os modelos podem e devem ser calibrados para que se tenha informação correta e previsões mais acuradas. Um bom exemplo é o papel das crianças e adolescentes na pandemia, o que ainda é um assunto controverso. E este ponto seria fundamental para decidir com mais segurança, do ponto de vista científico, a melhor estratégia e o tempo para a reabertura das escolas”, aponta o especialista.
Volta às aulas
Uma recente análise do MonitoraCovid-19, grupo de acompanhamento da epidemia da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), aponta que o retorno às aulas pode representar um perigo a mais para cerca de 9,3 milhões de brasileiros pertencentes ao grupo de risco (idosos ou pessoas com comorbidades). Isso porque eles vivem na mesma casa que crianças e adolescentes em idade escolar (entre 3 e 17 anos). Ainda que os centros educacionais adotem as medidas de segurança, o estudo aponta que os estudantes correm mais risco de se infectar ao usar transporte público ou ter contato com crianças e adolescentes que não seguem as recomendações.
“Estimamos, no estudo, que se apenas 10% dessa população de risco que vive com crianças em idade escolar vierem a precisar de cuidados intensivos, isso representará cerca de 900 mil pessoas na fila das UTIs. Além disso, se aplicarmos a taxa de letalidade brasileira nesse cenário, é algo como 35 mil novos óbitos”, analisa o epidemiologista envolvido no estudo Diego Xavier.
Antes de promover o retorno, o sanitarista e vice-diretor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz, Christovam Barcellos, frisa a necessidade dos governos de cada cidade oferecerem informações e suporte aos pais e alunos para se protegerem.
Dúvidas sobre as testagens
Médico epidemiologista e professor da Universidade de Pelotas (UFPel), Fernando Barros é um dos integrantes da EpiCovid, pesquisa que avaliou 133 cidades de todas as unidades federativas e considerada uma das maiores análises do mundo. “Estamos trabalhando com sorologia, positividade de anticorpos. Em algumas pessoas que foram infectadas, os anticorpos desaparecem. A gente não sabia disso. Estamos fazendo inquéritos periódicos e sabemos agora que, ao fazer o teste sorológico, vamos detectar pessoas que mantiveram o anticorpo, mas vamos perder as que tiveram infecção mais leve”, diz. A novidade é um ponto de questionamento de eficácia de uma imunização de rebanho, quando uma grande parte da população é exposta ao vírus, de forma a fazer uma barreira natural da infecção.
Artigo
Desafios para entender a expansão da covid e seus impactos na sociedade
José Alexandre Felizola Diniz Filho*
Desde o início da crise queremos saber o que vai acontecer até o final da pandemia. Todos ficam imaginando quando será o pico, qual a letalidade e qual a chance de uma segunda onda, que já vimos ocorrer em alguns outros países. Paradoxalmente, à medida que os modelos se tornam mais realistas, incorporando mais parâmetros sobre a doença, temos que lidar com mais incertezas. Mas é assim que a ciência funciona mesmo.
Em primeiro lugar, precisamos entender que a trajetória da doença depende de como a sociedade vai reagir aos eventos futuros. Podemos imaginar que as autoridades locais vão interferir quando as UTIs ficarem lotadas e as mortes aumentarem. Mas como elas vão lidar com as pressões do setor econômico? Podemos criar cenários e projetar como seria a progressão da doença, mas há muitas possibilidades que geram situações imprevisíveis.
Além disso, há sempre avanços no conhecimento científico sobre o próprio coronavírus. Nas últimas semanas, por exemplo, apareceram várias ideias importantes que afetam seriamente as estimativas da progressão da pandemia em longo prazo. O número de pessoas já infectadas na população (a prevalência) pode ser maior do que os vários estudos realizados no Brasil e no mundo sugerem, pois aparentemente o nível de anticorpos tende a decair depois de três ou quatro meses, principalmente nos indivíduos assintomáticos.
Essa constatação parece estar ligada também a um segundo ponto importante, que é a chamada “imunidade cruzada”, adquirida por algumas pessoas a partir de contato prévio com outros vírus. Com isso, entre 40% e 60% da população poderiam ser imunes à covid-19.
Finalmente, um outro estudo mostrou que a infecção pode não alcançar o número esperado pelos modelos epidemiológicos por causa da heterogeneidade espacial e social nas grandes cidades. Se essas ideias se confirmarem, as transmissões vão diminuir mais rapidamente e o fim da pandemia pode estar mais próximo do que previmos no início.
São boas notícias, claro, mas há alguns problemas sérios e efeitos colaterais que temos que considerar. Os estudos de prevalência já mostram que a covid-19 avança mais rapidamente entre os mais pobres, como se tivéssemos diversas pandemias ocorrendo paralelamente nas grandes cidades, com transmissões e letalidades diferentes.
Esse fato deveria ter um grande impacto na definição de políticas de flexibilização, já que a chamada “imunidade de rebanho” só seria alcançada às custas de uma enorme injustiça social. Mas será que alguém realmente se importa com isso?
Aparentemente não, infelizmente, e muitos dizem que agora “...é a hora de retomar a economia”. Isso nos leva à triste constatação de que, mais uma vez, a grande desigualdade social e a falta de uma sociedade educada e cientificamente preparada nos torna, como país, um péssimo exemplo para o resto do mundo.
* Professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal de Goiás, pesquisador 1A do CNPq, membro da Academia Brasileira de Ciências e Comendador da Ordem do Mérito Científico Nacional
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