Um dado surpreendente que revela como as condições de sobrevivência diante do novo coronavírus são desiguais é o aumento no tráfego de jatos executivos e de operações aeromédicas durante a pandemia. Serviço caro, que pode chegar a R$ 100 mil, ou prestado pelos melhores planos de saúde, aos quais a maioria da população não tem acesso, o atendimento médico em aeronaves especiais chegou a ter um aumento de 536% nos últimos meses. Para se ter uma ideia, em maio, houve mais voos da aviação geral (executiva) do que de aviões comerciais (veja no quadro).
De acordo com o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), do Comando da Aeronáutica, o total de voos no Brasil caiu em maio no comparativo com o mesmo período do ano passado. Resultado esperado, com queda de 70,5% no total, mas melhor do que o de abril, quando recuou 74,6%. “A recuperação foi puxada pela aviação geral (executiva). De um recuo de 47,2% em abril, passou a uma redução de 27,9%, em maio, com 20.002 (voos)”, informa. Quase 7 mil viagens a mais do que os 13.587 voos da aviação comercial.
A pandemia de covid-19 fez também explodir o número de fretamento de aeronaves para fins de saúde. Dados da Air Jet, empresa de táxi aéreo especializada em voos aeromédicos, mostram que, de janeiro a junho, a demanda por UTIs aéreas cresceu 546%. O aumento foi observado tanto em voos para terceiros quanto para os clientes do plano de saúde da operadora, a Prevent. “Todos os pacientes da Prevent têm acesso aos serviços da Air Jet em situações de urgência e emergência”, diz Fernando Parrillo, CEO da Prevent e da Air Jet. Segundo ele, 68% das remoções aeromédicas atendem a outras operadoras de saúde e particulares.
Gestor de operações da Unimed Aeromédica, Wagner Teixeira confirma o aumento. “A migração tem sido do Norte e Nordeste para Brasília, Goiânia, São Paulo e Rio de Janeiro. Um movimento atípico, transferindo de hospitais de pouco recurso para os de maiores recursos”, explica. Ele conta que os pacientes infectados pela covid-19 são transportados em macas-bolha, isoladas, para evitar o contágio, e a tripulação voa paramentada, com macacões e máscaras.
Pretos e pardos
Com muito mais recursos para enfrentar a doença, os ricos e brancos estão entre os menos afetados pela covid-19. Em Pernambuco, a Secretaria Estadual de Saúde passou a colocar dados de raça e cor no boletim diário da doença desde 8 de junho. Nas duas semanas seguintes, constatou-se que 77,5% dos casos graves da doença no estado foram registrados em pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas. O percentual de casos graves entre brancos foi 12% menor.
De acordo com o levantamento feito pelo consórcio de veículos de imprensa, a maioria dos estados não divulga informação sobre raça das vítimas do coronavírus. Mas existe um Projeto de Lei (2.726/20) em análise na Câmara dos Deputados que pretende tornar obrigatória a inclusão de marcador étnico-racial nos dados oficiais de infecção e mortalidade pela covid-19.
Em São Paulo, os bairros com a maior população de moradores pretos e pardos, proporcionalmente, são os que somam mais mortes pelo vírus na região metropolitana da cidade, de acordo com o relatório da Rede Nossa São Paulo, que se baseou nos registros sobre a doença feitos pela prefeitura da capital. Os distritos com mais favelas acompanham essa triste estatística, com mais vítimas do que nos bairros que não têm moradias irregulares.
Vulnerabilidade que se reflete entre as principais vítimas da covid-19. “As pessoas vivem geralmente em casas com muitas pessoas morando juntas. Então, a chance de transmitir o coronavírus é muito maior. As formas de combate à doença também passam pela dificuldade de a informação chegar a esses lugares e de o estado conseguir adotar certas medidas”, pontua o cientista social e político Pedro Augusto Ponce.
População indígena
Mesmo antes da pandemia, a desapropriação de terras onde as populações indígenas vivem sempre foi uma grande ameaça à sobrevivência dos povos originários no Brasil. “Entre 2018 e 2019, o desmatamento dentro das terras indígenas, consideradas áreas protegidas, aumentou em 80% e com uma possível atuação de pessoas de fora nestas terras”, afirma Tiago Moreira, pesquisador do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do Instituto Socioambiental (ISA). No debate realizado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e pela Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep), pesquisadores citaram estudos que apontam estragos ainda maiores provocados por garimpos — um dos grandes causadores de endemias na Amazônia. Em uma mesma área da região, cerca de 27 mil indígenas Ianomâmis dividem as terras com 20 mil garimpeiros. Com a chegada da pandemia, o desamparo representa o risco de um genocídio. “A população Ianomâmi corre o risco de ter, pelo menos, 40% de pessoas infectadas pelo novo coronavírus”, estima Moreira.
Excluídos da Educação
No ensino, a suspensão das aulas agravou o acesso à educação de estudantes vulneráveis, jovens e alunos portadores de deficiência por todo o mundo. O Relatório de Monitoramento Global da Educação 2020, da Unesco, mostra que cerca de 40% dos países mais pobres não garantem aos estudantes de menor renda, negros e deficientes o básico para a aprendizagem a distância durante o isolamento social imposto pela covid.
Trata-se de apoio como acesso a dispositivos tecnológicos ou a adequação das aulas às deficiências. Problema que afeta especialmente as meninas, as crianças com deficiências, os imigrantes e as minorias étnicas. “As lições do passado, como com o ebola, demonstraram que as crises sanitárias podem deixar muitos para trás, particularmente as meninas mais pobres, muitas das quais nunca voltarão à escola”, escreveu a diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay.
Nos países de renda baixa e média, os estudantes de famílias mais ricas apresentaram uma probabilidade três vezes maior de concluir o primeiro nível da educação secundária do que aqueles das famílias mais pobres. O relatório da Unesco, que monitora 209 países, mostra ainda que 9% dos países da América Latina e do Caribe não têm apoiado os estudantes mais vulneráveis nesse momento de pandemia.
Ensino remoto
O abismo do acesso às ferramentas educacionais entre estudantes de realidades socioeconômicas distintas no Brasil ficou evidente diante da necessidade do ensino remoto. Levantamento sobre acesso a tecnologias da informação e comunicação, o TIC Educação 2019 aponta que 39% dos estudantes de escolas públicas urbanas não têm computador ou tablet em casa. Nas escolas particulares, o índice é de 9%. Esse foi o cenário que as instituições de ensino se depararam ao entrar na pandemia, sendo obrigadas a suspenderem as aulas.
Bolsa Família denuncia avanço da doença
Dados compilados pela consultoria IDados no mês passado evidenciam essa realidade pelo recorte dos beneficiários do Bolsa Família. Entre os municípios com mais de 100 casos confirmados de covid-19 no país até maio, aqueles que têm até 10% da população composta por beneficiários do maior programa de assistência nacional registraram, em média, 3.900 casos confirmados da doença. Nos municípios de 10% a 20% de beneficiários, a média subiu para 5.200. E naqueles com mais de 20% beneficiários, a média foi de 5.900.
“As cidades com percentual maior de beneficiários do Bolsa Família em 2019 são as que mais tiveram casos de covid-19 por milhão de habitantes”, explica o pesquisador Matheus Souza, autor do estudo. Como os dados sobre o programa de assistência social podem ser uma referência das pessoas que vivem em situação de pobreza, a conclusão do pesquisador é de que os municípios mais afetados são os que têm parcela maior da população em situação vulnerável.
A última análise socioeconômica da taxa de letalidade da covid-19 no Brasil realizada pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (Nois), da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), publicada em junho, também evidencia maior grau de letalidade da doença entre negros. Dos 8.963 pacientes negros internados analisados pelo estudo, 54,8% morreram nos hospitais. Entre os 9.988 pacientes brancos, 37,9% não sobreviveram à doença.
Ao todo, foram analisados 29.933 casos ocorridos em unidades de saúde públicas e privadas, considerando apenas os encerrados, ou seja, que resultaram em morte ou recuperação até maio. “Esses números levantam questões que podem explicar diferenças como pirâmide etária, distribuição geográfica e desigualdades sociais, que afetam diretamente o acesso aos serviços de saúde e, consequentemente, os desfechos das internações”, pontuam os autores da pesquisa.
O nível de escolaridade também tem impacto nas chances de ganhar ou perder a batalha contra o coronavírus. Entre as pessoas com caso grave da doença que tinham nível de escolaridade superior, 22,5% morreram. Já entre aquelas sem escolaridade, a taxa de mortalidade foi de 71,3%. “Este efeito pode ser resultado de diferenças de renda que geram disparidades no acesso aos serviços básicos sanitários e de saúde”, reforçam os pesquisadores do Nois.