O laudo pericial, feito pelo Instituto de Criminalística (IC), reafirma o entendimento preliminar do dia do crime (2 de junho), de que a morte de Miguel foi acidental, sem que uma terceira pessoa pudesse estar presente para facilitar ou jogar a criança do alto do prédio. Ainda, afirma que Sarí apertou o botão da cobertura - fato negado repetidamente por ela própria e por sua defesa. Mas segundo o delegado Ramon, o botão da cobertura torna-se irrelevante de ser considerado porque a mulher permitiu o fechamento do elevador e admitiu que não monitorou o andamento da criança pelo prédio. Os fatos foram apresentados em longa coletiva de imprensa virtual, realizada nesta tarde, com a presença de Ramon e do perito André Amaral, do IC.
Em depoimento, realizado na última segunda-feira (29), Sarí disse que não apertou o botão. O gesto mostrado nas imagens seria uma simulação. Ela afirma que deixou a porta do elevador se fechar por ter se confundido ao ouvir sua filha lhe chamando - a menina aparece em algumas imagens, atrás de sua mãe -, e que tentou ligar para o celular de Mirtes Renata Santana de Souza, mãe de Miguel que trabalhava como doméstica na casa da primeira-dama de Tamandaré, e que no momento do crime estava passeando com os cachorros da patroa.
"Vimos que essa versão não se sustentava. Nos pareceu de forma bastante clara, pelas imagens e pelo conjunto probatório dos autos, que isso não ocorreu de forma alguma. Independente da conduta de pressionar ou não a tecla da cobertura, houve a conduta omissiva de permitir o fechamento da porta. Isso, sim, tem valor jurídico penal bastante relevante, inclusive para responsabilização penal da investigada", afirmou Ramon.
Saiba Mais
Em vez de tentar ir atrás da criança, ou saber por onde ela estava, Sarí voltou para seu apartamento. "Somado a esse fato, temos outros elementos, provas e informações importantes para a qualificação do caso, como o depoimento da manicure que estava trabalhando lá (na casa dela). Além disso, no depoimento da mulher, a repetição de frases cosignadas de que 'não teria responsabilidade pela criança' ou que 'deixou a criança passear'", prossegue o delegado. Com essa "infinidade de elementos reunidos", foi configurado o dolo de abandonar.
Não cabe, neste caso, o dolo de matar - o que descarta a classificação inicial do caso, como homicídio culposo, ou de homicídio com dolo eventual, aquele em que a pessoa não deseja, mas assume o risco de tirar a vida de alguém. "O que temos aqui é um crime preterdoloso", disse Ramon. O crime preterdoloso ocorre quando a pessoa comete uma conduta de forma intencional, mas o resultado disso é uma ocorrência mais grave do que a esperada.
Em resumo, segundo o delegado, Sarí abandonou de forma consciente o menino Miguel, mas não esperava que a criança morresse. "O dolo eventual está ligado à psique do agente. Para ver se houve dolo eventual, precisaríamos analisar a conduta antes e depois do fato. E as circunstâncias mostram de forma bastante clara que, ao saber da queda, a moradora (Sarí) desceu imediatamente, ofereceu socorro imediato à criança, dirigiu 'como uma louca', legitmamente preocupada com aquele socorro", exemplificou.
Ramon foi criticado por não ter classificado a morte do menino Miguel como homicídio doloso ou com dolo eventual de imediato. No dia do ocorrido, segundo o delegado, as informações eram parcas ou insuficientes. As únicas coisas que a polícia tinha, em mãos, era o depoimento da mãe do menino, Mirtes; o silêncio de Sarí, que não se manifestou sobre o caso na delegacia; e algumas imagens das câmeras de segurança.
"Se tivéssemos presumido dolo de matar ou de abandonar, a nosso juízo, teria sido uma prisão ilegal. Não havia nexo de causalidade. Conseguimos sair juridicamente pelo único caminho, a nosso juízo, com parcos elementos de informação, para que ela não saísse da delegacia 'pela porta da frente', como se diz popularmente", rebateu.
Perícia
O perito André Amaral ressaltou, por diversas vezes, que Miguel caiu de forma acidental. Não foi uma queda provocada, como suicídio, ou jogado por uma terceira pessoa. "É inviável outra pessoa ter participado disso. Se trata de um evento atípico, fortuito, de natureza acidental. Algumas imagens estavam bastante detalhadas sobre o momento em que ele deixou o elevador e fez sua fatídica escalada", explanou.
A cronologia foi detalhada, em material divulgado à imprensa pelas polícias Civil e Científica, com a sequência de imagens que integram o laudo pericial, encaminhado ao delegado Ramon na noite de sexta (26). "A criança entrou na laje de serviço por escalada da janela, desceu sobre as condensadoras, alcançou o gradil e, naquele posicionamento, era possível visualizar a rua. A criança estava posicionada e houve a queda. Calculamos velocidade, distância vertical e horizontal, tudo para eliminar qualquer possibilidade de ter outra pessoa no local", assegurou André.
Há duas possibilidades para a criança ter subido o gradil. A primeira é ter visto a mãe de longe. A outra é de ter achado que do outro lado era o prédio ainda, e não um espaço aberto. "Era uma criança de cinco anos", relembrou Ramon. "Dois funcionários, antes de ouvir o barulho da queda, relataram que ouviram gritos de chamamento da mãe. Não em um tom desesperado, mas de busca", adicionou. A cronologia completa você pode conferir no final desta reportagem.
Investigação
As investigações da morte de Miguel foram iniciadas de imediato, em 2 de junho, tão logo as autoridades foram notificadas do caso. Foram ouvidas 21 pessoas, que resultaram em 24 depoimentos. Sete policiais civis foram empregados nas diligências e dez profissionais do IC participaram, direta ou indiretamente, das análises.
O inquérito inteiro tem 452 páginas, dividido em três volumes. O material está em processo de digitalização, desde o início da tarde, e sendo remetido de imediato ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE). Cabe ao órgão, agora, analisar o inquérito e oferecer denúncia contra Sarí à Justiça.
O que dizem as partes
Em nota divulgada por seu advogado, Rodrigo Almendra, Mirtes Renata, a mãe de Miguel, afirma que "aproxima-se o dia em que, na cadeira de acolchoado azul à esquerda do magistrado, onde ficam os acusados, sentará uma mulher de estatura mediana, de cabelos louros bem cortados, olhos verde esmeralda e sorriso perfeito. Pobre apenas em melanina e em empatia".
Na carta, Mirtes prossegue, dizendo que "quando esse dia chegar, talvez ela já nem lembre a origem de tanto desdém e indiferença, mesmo também sendo mãe. É até provável que tente responsabilizar a própria vítima, o pequeno Miguel, pelo que lhe aconteceu. Afinal, após noticiar aos parentes próximos sobre o falecimento, disse que 'cuidar dele não era sua responsabilidade'" e que "a fina senhora destilará novamente seu cinismo e tentará convencer o julgador que tudo não passou de um acidente".
"A diferença entre o acidente e o desamparo é a escolha. Optou-se em desproteger. Miguel foi largado no elevador sem ninguém à sua espera. Pareceres jurídicos caros não apagam o passado, não limpam consciência e não desfazem os fatos", finaliza a carta.
A defesa de Sarí Côrte Real, representada pelo advogado Pedro Avelino, não se posicionou até a última atualização desta reportagem, às 19h17 de 1 de julho.
Relembre o caso
Miguel morreu ao despencar de uma altura de aproximadamente 35 metros, do nono andar do edifício Píer Maurício de Nassau, que integra um condomínio de luxo popularmente conhecimento como Torres Gêmeas, localizado no bairro de São José, área central do Recife.
No dia da tragédia, 2 de junho, chorando e procurando pela mãe, a criança entrou no elevador do edifício duas vezes para buscá-la. Ele chegou a ser impedido pela primeira vez por Sarí, mas conseguiu se desvencilhar na segunda tentativa. Em vídeos de câmeras de segurança, a mulher aparece deixando o menino sozinho no elevador. O menino foi enterrado no dia seguinte, 3, sob forte comoção de parentes. Sarí e o marido, Sérgio Hacker, chegaram a comparecer ao velório, mas foram hostilizados.