Sou de uma geração que entrou na vida adulta quando, no Brasil, nascia o regime militar. A maioria dos brasileiros de hoje não teve a experiência pessoal de viver tantos anos sob um regime baseado na força. Viver sem cidadania política e sem a proteção de leis que valem para todos é o mesmo que perder uma parte essencial de nossa condição humana. No fim de nosso drama autoritário, descobrimos que o sacrifício da liberdade havia sido em vão. Mesmo governando sem os limites e restrições do Estado democrático, sem Congresso livre e sem Judiciário independente, o regime terminou sem cumprir suas promessas, devolvendo um país mal economicamente e sem as mudanças e reformas que lhe abririam as portas do crescimento e da modernidade.
Uma nação que perde a memória será, sempre, uma nação sem rumo. O que fez da história da humanidade uma história em geral de evolução e de progresso tem sido, justamente, essa capacidade de lembrarmos nossos erros e os perigos que já corremos.
Nunca, em nossa história, nos defrontamos com tantos e tão decisivos problemas ao mesmo tempo. Depois de uma década de crescimento ínfimo, fomos alcançados pela mais devastadora pandemia já conhecida por nossa civilização. Sem vacinas e sem medicação apropriada, recorremos, aqui e em toda a parte, a um isolamento social que está dissolvendo como um ácido as estruturas econômicas e destruindo os meios de vida de grande parte da população. É um cenário de guerra, e as guerras só são vencidas por nações que sabem se unir. James Madison, um dos fundadores da nação americana, há 250 anos, advertia que se poucas tropas são suficientes para defender uma nação unida, nenhum exército é capaz de defender uma nação desunida.
As guerras que devemos lutar, hoje, são a guerra contra a doença e a guerra contra a ruína econômica, mas nenhuma delas parece ter força para nos mobilizar. Somos, hoje, uma nação que só quer lutar contra si mesma e, se assim for, vamos certamente perder todas as guerras.
Nesta luta para nos dividir, surge, no ar carregado, soprado dos confins mais sombrios do nosso passado, apelos novos de intervenção militar, para que a vontade do governo possa se impor a todos sem restrições. Há quem desdenhe desses sinais e prefira fechar os olhos. Mas quem presta melhor atenção à história sabe que, na vida das sociedades, o inferno sempre nos espreita. Manifestações de rua, com a presença ostensiva do presidente da República e de alguns generais em cargos civis no governo, com faixas e gritos pedindo o fechamento do Supremo e do Congresso Nacional, não são simples extravagâncias destinadas ao anedotário da política. São nuvens de tempestade e é melhor nos abrigarmos.
Não seria justo associar nossas Forças Armadas a estes ensaios de golpe. Seu silêncio é o testemunho de sua lealdade às leis e à Constituição e tanto entre nós, como nos países ocidentais, os militares tornaram-se forças que estão na vanguarda da segurança das nações diante das ameaças que nascem com o poder das tecnologias. A política interna não está em sua missão.
Nos Estados Unidos, o governo atual também vive de apelar para os sentimentos mais primários da sociedade e de buscar, como aqui, esconder-se atrás dos militares para se proteger. Lá, a resposta dos militares foi inequívoca. O almirante Mike Mullen, quando o presidente Trump ameaçou empregar as Forças Armadas para reprimir manifestações contra o racismo, disparou: “Os cidadãos americanos não são e nunca serão o nosso inimigo”. O chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, general Mark Milley, tendo estado ao lado de Trump numa encenação pública, desculpou-se abertamente à nação: “Eu não deveria estar lá. Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou a percepção de que os militares estão se envolvendo em política doméstica”.
Em 1964, com todo o futuro à minha frente, tive medo de perder algo muito grande em minha vida. Eu tinha razão. Depois de tantas coisas vividas, o que mais desejo, hoje, é esconjurar aqueles velhos temores do meu coração.