Episódios em que as doenças do homem branco dizimam populações indígenas no Brasil se repetiram diversas vezes na história. O mais recente capítulo é o do novo coronavírus, que se alastra pelo território brasileiro de maneira crescente. Nas terras dos povos nativos, o cenário não é diferente. Até o último sábado, o vírus havia matado 117 indígenas e infectado 4.185, de acordo com dados oficiais do Ministério da Saúde, contabilizados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Os números são ainda maiores quando se leva em conta os grupos que vivem fora das aldeias, não contabilizados pela Sesai. A falta de uma contagem que alcance a todos dificulta a criação de uma política mais eficaz para proteger essa população.
Segundo a Articulação de Povos Indígenas do Brasil (Apib), até o último sábado, 332 indígenas foram vítimas da doença, enquanto 7.208 estavam infectados. Para o coordenador de Apib, Dinamam Tuxá, 32 anos, os números podem ser maiores. “A subnotificação é bem maior. Temos relatos de indígenas morrendo com sintomas da covid-19 sem serem testados. Não dá para discutir uma política mais eficaz e específica, pois a própria Sesai se nega a catalogar os casos de indígenas em contexto urbano”, afirmou.
O secretário da Sesai, Robson Santos da Silva, explica que o órgão não a atende quem esteja fora das terras indígenas por uma questão legal. Conforme dispõe a Lei Arouca nº 11.794/99, a população indígena, especificamente residente em aldeia, deve ter atendimento local de atenção básica à saúde ofertada pela secretaria. “Todos os casos de covid-19, independentemente de especificidade de população, confirmados por teste, no Brasil, são notificados ao SUS pelos municípios, estados e União. Os casos confirmados em aldeias são notificados pela Sesai e entram na contagem geral de casos confirmados no país pelo Ministério da Saúde”, informou a secretaria por meio de nota.
Criada em 2010, a Sesai tem, atualmente, 751.819 indígenas cadastrados e cuida de 5.852 aldeias. De acordo com Robson Santos, 62% da população indígena estão aldeadas. Apesar de garantir presença em todo o Brasil, o secretário afirma que não consegue contabilizar os infectados pela covid-19 que vivem nas cidades, porque a base da secretaria são os 34 distritos sanitários especiais indígenas dentro das aldeias. “Uma pessoa nasce e morre indígena. Isso é um direito que a pessoa adquire ao nascer, mas como há possibilidade da autodeclaração, é uma tarefa hercúlea reconhecer uma pessoa fora da terra indígena como indígena”, justificou.
Letalidade
Ao analisar os dados divulgados pela Apib, é possível notar que a taxa de letalidade do vírus entre os povos indígenas é igual à da população em geral: 4,6%. No entanto, as taxas já chegaram a ter uma diferença de 3,4%, quando a dos indígenas chegou a ser de 8,4%, enquanto a da população geral era de 5%.
O coordenador da Apib relata que dois fatores podem influenciar na letalidade do vírus nos povos indígenas. “O primeiro é biológico, pois alguns indígenas têm a imunidade mais baixa, porque não tiveram acesso às campanhas de vacinação. Por isso, eles estão mais sujeitos ao vírus”, explica. Além disso, o coordenador da Apib indica o fator político como outra influência. “Há ausência do Estado em aplicação de políticas públicas estruturantes que garantam a integridade das comunidades indígenas”, critica.
Luta solitária pela sobrevivência
A precariedade do atendimento governamental e o medo do novo coronavírus têm forçado os povos indígenas do Brasil a pensar em soluções autônomas. À margem do conflito entre o presidente da República, governadores e prefeitos, que fazem cabo de guerra sobre a questão do lockdown, as comunidades indígenas contam, basicamente, com as próprias lideranças, ONGs e profissionais da saúde para se manterem protegidos. É uma luta quase solitária contra o avanço da doença.
A saída encontrada pelo povo Potiguara, na Terra Indígena (TI) Baía da Traição, na Paraíba, foi improvisar os próprios bloqueios para isolar a comunidade e evitar que casos da doença avancem entre os indígenas. “Nossa aldeia fica muito próximo da cidade, então, o nosso pessoal pega na cidade e leva a doença para a aldeia. Por isso, decidimos fazer os bloqueios”, explica o cacique Sandro Gomes Barbosa, de 46 anos.
Desde o início de março, os índios seguem um protocolo rígido de confinamento. Idas à cidade são controladas, turistas estão proibidos de acessar a praia que fica dentro da TI e o uso de máscaras é obrigatório em todas a área. Ao todo, são 32 aldeias do povo Potiguara.
Com o surgimento dos primeiros casos da doença entre os índios, as lideranças decidiram constituir um comitê de crise para os assuntos da pandemia. “Hoje, o melhor remédio que temos é o isolamento social. É o que a gente passa para o nosso povo. Paramos tudo na aldeia: os jogos de futebol, as danças, tudo. Estamos dentro de casa, é estressante, mas, se não tivéssemos fechado o acesso às aldeias, a situação estaria muito pior”, relata o cacique.
Segundo o último boletim epidemiológico divulgado pela Secretaria de Saúde Especial Indígena (Sesai), a terra indígena do cacique Sandro tem 56 casos confirmados do novo coronavírus e nenhuma morte. Em todo o estado da Paraíba, são 36.784 casos e 766 mortes. (HL, LC e MEC)
Morte dos anciãos e cultura em risco
A doença, que atinge de forma mais letal os mais idosos ,coloca em risco parte considerável da cultura e dos princípios das 305 etnias do país. Os anciãos são os guardiões e propagadores da história desses povos. De acordo com o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, em todo o país morreram cerca de 200 indígenas. E, assim como ocorre nas estatísticas nacionais do Ministério da Saúde, a maioria das vítimas tem mais idade.
Angela Kaxuyana, da etnia Kaxuyana, membro executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), compara as mortes ao incêndio de bibliotecas e do Museu Nacional no Rio de Janeiro, devido ao impacto cultural que a morte dos anciãos está causando aos povos originários. “São duas perdas. Primeiro, é uma parte de você que se vai quando se perde o avô, o pai, o idoso. A dor é imensurável. Além de perder pessoas importantes, estamos perdendo nossas bibliotecas, nossas memórias, nosso ser enquanto povo indígena”, explica. “É como o incêndio no Museu Nacional, em que tudo que estava registrado está pegando fogo, virando cinza. É isso que nos preocupa”, diz.
Durante a entrevista ao Correio, Angela Kaxuyana recebeu a informação da morte da liderança dos Munduruku, do Pará. “Acabou de falecer mais uma liderança Munduruku. São 11 mortos em cinco dias”, avisou. Entre os povos da Amazônia, segundo ela, diariamente morrem de quatro a cinco anciãos. “É um número muito grande, considerando que somos apenas 1% da população do Brasil. É absurdo, alarmante. A maioria tem sido de mulheres e homens mais velhos. Estamos ficando órfãos. Está indo com eles a sabedoria, nossa história, memória e resistência. Também perdemos lideranças que tiveram papel importante na luta da resistência do movimento indígena. Uma parte do movimento também se vai com a perda dos anciãos. É uma perda irreparável para um povo”, alerta.
A indígena afirma, ainda, que muitos desses povos foram infectados por funcionários da Secretaria Especial de Saúde Indígena e que há subregistro de infectados nos levantamentos feitos pelo governo federal. “É uma outra violência do Estado. Deixar-nos no anonimato é uma tentativa de esconder a situação real e alarmante em que a população se encontra. É uma forma de colaborar para o genocídio dos povos indígenas”, denuncia.