Brasil

Estratégia da desinformação

Presidente Jair Bolsonaro dificulta a divulgação sobre a propagação da covid-19, apesar da curva crescente de casos e quase 36 mil mortes no país, com atrasos cada vez maiores na atualização dos números e omissão de dados para dificultar a contagem de vítimas



Mesmo diante da curva crescente de casos e mortes pelo novo coronavírus no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro insiste em dificultar a divulgação de dados sobre a propagação da doença. As estratégias são variadas: atrasos cada vez maiores na atualização dos números, omissão de dados para dificultar a contagem de ocorrências e a possibilidade de revisão de registros de óbitos, apesar da subnotificação já admitida por integrantes do próprio governo.

Bolsonaro confirmou, ontem, que, a partir de agora, os dados relativos à covid-19 só serão divulgados após as 22h — ou seja, depois que os principais telejornais do país foram ao ar e em cima do horário de fechamento da maioria dos jornais impressos —, como antecipou o Correio na última sexta-feira. A mudança seria uma maneira de “evitar subnotificação e inconsistências”, justificou o presidente, no Twitter.

Os estados, no entanto, enviam as informações até as 15h todos os dias. Durante a gestão de Luiz Henrique Mandetta à frente do Ministério da Saúde, a divulgação era feita às 17h, em coletiva de imprensa diária. Depois, passou para às 19h, com entrevistas cada vez mais raras. Desde que assumiu a pasta, em 15 de maio, no lugar de Nelson Teich, o ministro interino Eduardo Pazuello não concedeu nenhuma coletiva para comentar o balanço.

O governo também mudou a metodologia de divulgação dos dados, o que dificulta ainda mais o trabalho da imprensa. No boletim diário, o ministério não coloca mais o número total de casos, contados desde o início da pandemia, mostra apenas os registros de recuperados, novos diagnósticos e mortes nas últimas 24h. Para chegar às informações completas, é preciso calcular por conta própria.

O levantamento ficou mais difícil, com mudanças feitas ontem na página oficial do ministério na internet. Depois de um dia fora do ar, o site voltou a funcionar com informações restritas, no mesmo esquema dos boletins diários, apenas com novas contaminações e mortes, além do número de pessoas recuperadas — que fica em destaque, apesar de ser bem inferior ao de novos casos.

Também não é mais possível baixar os dados em planilhas, o que facilitava a análise por parte dos especialistas e da imprensa. Ou seja, a população não tem mais acesso às informações sobre o histórico no país. Devido à falta de transparência do governo federal, a Universidade Johns Hopkins precisou interromper o acompanhamento da propagação no Brasil. A instituição faz levantamentos globais sobre a disseminação do novo coronavírus.





Recontagem
Além de dificultar a apuração, o ministério cogita mudar números já divulgados, segundo Carlos Wizard, futuro secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da pasta, que acusou os gestores públicos de registrarem como se fossem em decorrência da covid-19 mortes que não teriam a ver com a doença. Os dados atuais seriam “fantasiosos ou manipulados” por interesses orçamentários dos estados, disse Wizard, na última sexta-feira, ao jornal O Globo.

O presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Alberto Beltrame, classificou a medida como uma “tentativa autoritária, insensível, desumana e antiética de dar invisibilidade aos mortos pela covid-19.” A fala “grosseira, falaciosa, desprovida de qualquer senso ético, de humanidade e de respeito, merece nosso profundo desprezo, repúdio e asco”, afirmou, em nota de repúdio publicada ontem.

Para Beltrame, Wizard “menospreza  a inteligência de todos os brasileiros” ao afirmar que secretários de Saúde alteram dados sobre mortes decorrentes da covid-19 em busca de mais dinheiro da União. “O secretário, além de revelar sua profunda ignorância sobre o tema, insulta a memória de todas aquelas vítimas indefesas desta terrível pandemia e suas famílias”, diz a nota.

Transparência
Diante das críticas sobre a mudança na apresentação dos oficiais, a Defensoria Pública da União (DPU) foi à Justiça Federal de São Paulo para exigir transparência do Executivo. A DPU entrou com um pedido de liminar, ontem, cobrando a apresentação de todas as informações relativas aos casos confirmados e às mortes decorrentes da covid-19 no Brasil.

A ação apresentada ao plantão judicial pede que o governo retome imediatamente a publicação dos dados e exige que o boletim diário volte a ser apresentado pelo ministério até as 19h e de forma integral. O defensor João Paulo Dorini, que assina o documento, argumenta que é dever do poder público “informar correta e adequadamente à população todos os atos adotados no combate à disseminação da doença.”

Além de defender a maquiagem dos dados, o presidente Jair Bolsonaro segue ignorando as medidas de distanciamento social para evitar a maior propagação do novo coronavírus. Na manhã de ontem, usou dois helicópteros da Força Aérea Brasileira para acompanhar uma blitz da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na BR-020. Na ocasião, sem máscara e acompanhado por alguns de seus ministros, Bolsonaro aproximou-se de um aglomerado de pessoas para fazer fotos. O presidente também não usou máscara durante visita ao Comando de Artilharia do Exército, em Formosa (GO).