Brasil

A pandemia e o novo normal

Impactos momentâneos ou legado definitivo? Da rápida queda na poluição do ar a animais selvagens vistos em centros urbanos, a pandemia transformou, também, o comportamento social. País deverá redefinir novas políticas públicas no pós-crise, dizem especialistas

A pandemia do novo coronavírus transformou o mundo de uma forma nunca antes imaginada, com fechamento de fronteiras e medidas de isolamento. O que a humanidade aprenderá com essa crise sem precedentes e se haverá legado positivo são o que especulam os especialistas. As mudanças são evidentes nos âmbitos social, ambiental e econômico. Com o recolhimento do ser humano, alguns indicadores do meio ambiente tiveram melhoras expressivas em termos globais, como a qualidade do ar e da água e o ressurgimento de espécies da fauna. No comportamento social, há avanços, como demonstrações de solidariedade, maior convívio em família e conscientização sobre a importância de hábitos de higiene.

Qualquer tipo de benefício, no entanto, não é motivo de celebração, pois terá sido às custas de milhares de mortes. Ainda assim, a reflexão sobre as lições se impõe. Para o especialista em Sustentabilidade na Universidade de Nijenrode, na Holanda, Eugenio Singer, presidente da Ramboll no Brasil, são paradoxos interessantes. “Todo o fechamento resulta numa abertura que pode ser mais disruptiva do que vinha acontecendo normalmente. Por questões óbvias, (o vírus) resultou e impactou em questões sociais, ambientais, econômicas”, avalia. “A covid fez pelo meio ambiente o que as 25 COPs (Conferência das Partes da convenção das Nações Unidas sobre mudança climática) não fizeram”, diz.

Singer afirma que estudos de agências espaciais mostram claramente a redução dos níveis de dióxido de nitrogênio. “A estimativa inicial é a de salvar 50 mil vidas com a queda da poluição, porque isso reduz problemas respiratórios. Com menor tráfego marítimo, a qualidade da água melhorou e os peixes voltaram”, destaca. No entanto, o especialista aponta outros ganhos, além dos ambientais, como a utilização de plataformas digitais, que transformaram as reuniões laborais. “A produtividade do trabalhador aumentou, porque ele deixa de perder tempo se deslocando”.

“Uma lição que o país deve levar da pandemia é como definir novas políticas públicas no pós-crise. Qual será a reação ao emprego, à mobilidade. O modo de trabalhar vai mudar. É injusto uma pessoa ter que se locomover duas horas e meia e gastar cinco horas por dia dentro de um transporte público. Isso certamente deve alterar a questão de mobilidade”, analisa.

No entender de Mariangélica de Almeida, advogada especialista em Direito Ambiental, o coronavírus deixou claro que muito precisa mudar. “Houve um despertar para coisas desnecessárias. O deslocamento, por exemplo. Ficou evidente a maior produtividade no teletrabalho. No órgão onde trabalho, a produtividade aumentou 30%; e 70% das pessoas devem permanecer em casa”, ressalta.

Toda a redução no ambiente de trabalho significa menos emissões no trânsito, menor utilização de papel, com árvores preservadas, além de redução no consumo de energia nos escritórios, enumera. “Será preciso repensar decisões, porque certos gastos estão migrando para a casa das pessoas”, alerta. Almeida pondera que até o desperdício de alimentos cai com a maior presença da pessoa em casa: “Aumenta a compra por aplicativo, com redução no uso das sacolas plásticas”.

Alguns efeitos podem não ser tão positivos para o meio ambiente, ressalta a advogada. “O lixo hospitalar está aumentando, com o descarte de máscaras e de embalagens de álcool em gel. Além disso, o hábito de lavar as mãos, embora positivo no aspecto social e sanitário, amplia o consumo de água”, pontua.

A melhoria na qualidade do ar foi sensível em todos os países que promoveram quarentenas. No Brasil, segundo a professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP) Regina Maura de Miranda, especialista em poluição atmosférica, a redução foi significativa em São Paulo, sobretudo, nas duas últimas semanas de março, com grande adesão à quarentena. “Houve queda do monóxido carbono (CO2), emitido por veículos leves, e também do dióxido de nitrogênio (NO2), mais relacionado ao diesel. Os dados de abril também estão abaixo do normal”, revela.

Conscientização

Na opinião de Heinrich Hasenack, professor de departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), as melhorias percebidas na qualidade do ar não serão perenes. “Acredito que a poluição deve voltar aos mesmos níveis de antes da pandemia, assim que as indústrias voltarem a produzir a todo vapor e os carros retornarem às ruas”, opina. Contudo, o lado positivo, segundo o professor, é que será possível mensurar melhor. “Quando soubermos como houve a redução e o que contribuiu para ela, isso pode orientar políticas públicas a fim de encontrar um meio termo”.

Hasenack alerta, no entanto, que a redução da poluição do ar que ocorreu em vários países não “fará cócegas” nas mudanças climáticas se não provocar uma conscientização. “O desafio é se a sociedade vai querer isso”, sustenta. O professor pontua que a redução das emissões decorrentes do menor consumo de combustíveis fósseis pela indústria e no movimento de veículos era esperada. “Mas só contribuirá para amenizar as mudanças climáticas se efetivamente diminuir após a pandemia”, reitera.

Outro fenômeno foi o reaparecimento de animais (veja mais na arte ao lado). De acordo com Paulo Brack, professor de Instituto de Biociência da UFRGS, é normal que a fauna se aproxime de centros urbanos por conta do menor ruído. “Muitas pessoas estão se dando conta de que o ritmo que a gente tinha não dá para ser retomado e que fazemos parte de um ecossistema”, afirma. Segundo ele, estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) mostra que 8,8 milhões de pessoas morrem por ano em consequência da poluição do ar.

O cientista explica que o sistema imunológico responde à qualidade de vida. “Passada a pandemia, será necessário pensar em manter a qualidade de vida, rever a matriz produtiva, converter a indústria a uma produção mais limpa, eliminar ou reduzir os gases de efeito estufa”, elenca. “Com esse momento de alívio, eu me pergunto se não estamos entrando num colapso ecossistêmico”, diz.

Um questionamento ainda mais pessimista tem Alexandre Toshiro Igari, pesquisador, orientador e vice-coordenador no Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade da EACH-USP. “Tenho uma expectativa ruim de que não vamos tirar nada de bom dessa crise. A pandemia mostra o lado ruim da sociedade, como representantes da indústria colocando na mesma balança vidas humanas e a sobrevivência de empresas. Temo que sociopatia, egoísmo e consumismo prevaleçam”, lamenta.

Contudo, o pesquisador reconhece que muitos fenômenos foram positivos. “Vimos águas-vivas por canais, cangurus na Austrália, a vida selvagem vindo à cidade, com menos gente nas ruas. Isso mostra como as nossas atividades afetam negativamente o meio ambiente”, assinala. “Talvez seja possível uma ponderação sobre o nosso estilo de vida e nossas escolhas. Por exemplo, ao trabalharem em casa, as famílias estão experimentando uma reconexão positiva.”


"Quando soubermos como houve a redução e o que contribuiu para ela, isso pode orientar políticas públicas a fim de encontrar um meio termo”
Heinrich Hasenack, professor de departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)