Análise sobre os perfis das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar indica que aproximadamente 34% dos casos envolvem companheiros e, 32%, ex-companheiros. É o que mostra o Diagnóstico de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, divulgado pela Polícia Civil em setembro do ano passado, envolvendo ocorrência de 2017 até o primeiro semestre de 2019.
Ano passado, 31.187 mulheres sofreram violência física. Houve 67 feminicídios e 104 tentativas. Belo Horizonte registrou o maior número de episódios, com 12% no primeiro semestre de 2019.
Especialistas avaliam que, com a quarentena, há risco de maior incidência. Segundo a promotora de Justiça Patrícia Habkouk, coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), estudos realizados na China apontaram que o número de relatos de violência doméstica duplicaram naquele país durante o período de isolamento social obrigatório.
"O momento de tensão social, as incertezas econômicas, a sobrecarga de trabalho e responsabilidades impostas muitas vezes às mulheres podem ensejar comportamentos controladores e violentos por parte dos homens, uma situação amplamente favorável ao aumento dos casos de violência no Brasil", avalia.
A delegada de polícia chefe da Divisão Especializada em Atendimento à Mulher, ao Idoso, à Pessoa com Deficiência e Vítimas de Intolerância, Isabella Franca Oliveira, concorda: "Na experiencia de outros países que vêm vivendo esse isolamento social, a quarentena demonstra que é possível ter um aumento de casos de violência doméstica e familiar contra a mulher".
Pollyana Abreu ajuda mulheres por meio das redes sociais. A empreendedora administra na internet a página Não era amor, que nasceu em julho de 2018 para ajudar mulheres que estão ou saíram de relacionamentos abusivos. Segundo ela, para a mulher que é casada ou mora com o parceiro abusador, a casa é o lugar mais perigoso. "E esse perigo aumenta com a quarentena, porque haverá maior contato com esse abusador e acontecerá o escalonamento do ciclo da violência. Essa mulher estará mais isolada socialmente e com menos amparo de sua rede social, como trabalho, estudo, amigas, familiares, diminuindo a possibilidade de pedir ajuda e aumentando o risco".
Os números de ocorrências relacionadas à violência doméstica contra a mulher que indicariam se houve aumento ainda não foram divulgados pelas autoridades. Para a delegada Isabella, será preciso cautela extra para analisá-los. "A violência pode ter ocorrido ontem, mas ser registrada após a quarentena. Assim como temos casos anteriores ao isolamento social que podem ser registrados agora. Precisamos de cuidado para passar as informações que realmente refletem a realidade", observa
Já a promotora de Justiça Patricia Habkouk chama a atenção para possíveis medidas protetivas. "O ponto aqui a ser abordado é a garantia de acesso que deve ser assegurada a todas as mulheres em situação de violência. O que inclui meios de acesso à Justiça, a mecanismos eficazes de proteção", acrescenta. Ela diz que a própria dificuldade de registro de ocorrência nesse período pode mascarar o total de casos.
Por outro lado, Pollyana, que administra a página Não era amor, sustenta que a busca por informações sobre como ajudar a proteger essas mulheres nesse período de quarentena aumentou a partir da veiculação de abordagens da imprensa.
O ciclo da violência
Na visão das especialistas, é importante estar em alerta ao ciclo da violência, geralmente associado a uma sequência de eventos de agressão entre parceiros íntimos, em que o ambiente passa a girar em torno de três fases: tensão, violência e reconciliação.
A promotora de Justiça explica que, na primeira fase, ocorrem episódios de violência psicológica, incluindo desrespeito, intimidações, abusos verbais, constrangimento público. Na segunda, a da violência aguda ou explosão, há as agressões físicas e verbais mais graves. Já na terceira, ocorre a reconciliação: o homem se arrepende e promete mudar.
"O mais comum é que esse ciclo se repita, com intensidade cada vez maior e a intervalos cada vez menores, terminando em lesões graves ou no próprio feminicídio", completa.
E onde pedir ajuda?
O primeiro desafio, para ela, é reconhecer os sinais e se posicionar diante deles. "Vivemos em uma sociedade em que os comportamentos atribuídos a homens e mulheres ainda são muito romantizados, se espera dos homens o papel de provedores, de responsáveis pela família, enquanto às mulheres caberia o cuidado. 'Os homens mandam, as mulheres devem obedecer' e isso naturaliza a violência", critica a promotora.
Uma das saídas é buscar as medidas protetivas de urgências previstas na Lei Maria da Penha. A delegada Isabella Oliveira diz que, no âmbito policial, os serviços mais urgentes não foram interrompidos durante o isolamento social. Mas ocorreu um planejamento para a execução dos trabalhos de forma a reduzir o fluxo de pessoas nas unidades policiais, por causa da ameaça do coronavírus. Neste momento, a recomendação principal para denúncias é optar por serviços on-line ou telefônicos, e se dirijir a uma unidade policial apenas em casos imprescindíveis.
"A delegacia está 24 horas recebendo ocorrências graves, além de casos de abrigamento em situação de violência. Nos demais casos, para evitar a circulação de número grande de pessoas dentro da unidade policial, é feito um agendamento. Policial faz contato e tomamos as medidas cabíveis, inclusive o pedido de medida protetiva", disse a delegada.
Como ajudar?
Em caso de violência contra a mulher, a orientação inicial é discar 190 ou, nas situações que já tenham ocorrido, 180.
Sendo possível, uma das recomendações é evitar a quarentena ao lado de potenciais agressores. A rede de vizinhos também pode ajudar. "As primeiras pessoas que poderão ajudar essas mulheres são os vizinhos. Chamando a polícia, intervindo tocando interfone ou campainha, solicitando ajuda do síndico", sugere Pollyana Abreu, administradora da página Não era amor. E o isolamento social diante da pandemia, observa, não é o responsável por esse tipo de ocorrência. "A quarentena somente agrava algo que já existia".
Dicas à vítima que sofre violência em casa*
Compartilhe com amigas, pessoas próximas ou vizinhas sobre possíveis agressões;
Combine um sinal, em caso de emergência. Pode ser até um emoji no celular;
Escreva quando não puder falar;
Mantenha o celular sempre carregado e conectado à internet;
Se tiver carro, deixar com gasolina, as chaves na ignição e estacionado de forma fácil para sair da garagem.
Fonte: *Não Era Amor