Há quase um ano, Natália de Oliveira acende todos os dias uma vela antes de rezar para que o corpo da sua irmã, Lecilda, finalmente seja encontrado em meio à lama após o rompimento da barragem em Brumadinho, em Minas Gerais.
Para o que já se tornou um ritual, ela coloca um terço próximo a uma foto da irmã - que aparece na imagem sorridente, durante um período de férias - em uma mesa situada na sala de estar.
A enxurrada de resíduos, desprendidos da barragem da mina Córrego do Feijão, da mineradora Vale, sepultou a região. Como resultado, o desastre deixou 270 vítimas. Desse total, são 259 mortos e 11 desaparecidos - entre eles Lecilda de Oliveira. Até hoje, uma equipe de 73 bombeiros segue em busca dos que nunca foram encontrados.
"No meio dessa tragédia toda, nos foi tirada completamente a dignidade de um enterro. Ainda não a localizaram, mas a gente não aceita falar que são desaparecidos. A minha irmã estava la na Vale, ela e os amigos dela. Estavam no horário sagrado do almoço, dentro do refeitório, sexta-feira, às 12h28", conta Natalia sobre a sua irmã, funcionária do departamento de Recursos Humanos da mineradora.
Desde a tragédia, com frequência Natália volta às mensagens de áudio que sua irmã lhe enviava pelas manhãs pelo WhatsApp.
"Sinto que de alguma forma ela me dá bom dia. Essas mensagens são o único motivo para me fazer levantar da cama", conta em lágrimas.
As duas irmãs tinham apenas um ano de diferença, com 48 e 49 anos, e sempre moraram juntas em Brumadinho. Ao passar em frente ao colégio onde as duas estudaram, Natália se emociona novamente.
"Toda a cidade foi muito atingida, perdemos muitos amigos de infância. Isso nos deixa acabados".
Luto e comprimidos
Assim como Natália, Malvina Firmino Nunes ainda não pôde viver o luto do seu filho, desaparecido há doze meses. No dia da tragédia, ela soube por uma outra filha que Peterson, de 35 anos, tinha sido levado pela lama.
A vida de Malvina desabou. Desde então, nunca mais conseguiu dizer o nome do filho sem chorar. Também não consegue dormir ou se alimentar sem tomar comprimidos.
Essa mãe recebeu uma indenização, assim como outros quatro mil familiares das vítimas. Com os R$ 700 mil que recebeu, comprou uma casa pequena. Os indenizados, no entanto, consideram que a compensação financeira da mineradora não é suficiente.
"Eu só espero justiça. Espero a prisão (deles), mas acho que não vão ser presos. Quem está preso é quem morreu. Os colarinhos brancos ficam soltos", afirma.
Natália e Malvina pretendem levar a Vale ao tribunal. "Acreditamos que para honrar nossos mortos temos que fazer a nossa parte. Não podemos aceitar que a mineradora cause mortes. A Vale deve aprender uma lição", diz Natália.
Nesta terça (21/1), o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) denunciou por homicídio doloso o ex-presidente da Vale, Fabio Scvartsman, e outros 15 funcionários e ex-funcionários da empresa e da alemã TÜV SÜD, que emitia os certificados de segurança.
"Unidos pela tragédia"
Algumas pessoas levam a tragédia em seus corpos. No dia do desastre, a adolescente Talita Oliveira, de 16 anos, viu a morte muito de perto.
Ficou presa na lama, mas depois foi resgatada pelos bombeiros. Ela foi retirada com a ajuda de um helicóptero, em uma cena que foi exibida ao vivo na TV.
Até hoje, suas pernas estão cheias de cicatrizes e só consegue andar com muletas.
"Estive no hospital por seis meses. Tomei muita morfina, suportei dores muito intensas", relata a adolescente.
Apesar da enorme quantidade de remédios que toma todos os dias e as sessões dolorosas de terapia, Talita "se recupera bem". É uma sobrevivente esperançosa.
"Muitas vezes tenho pesadelos, aquela imagem sempre vem na minha cabeça: eles tentando me tirar, eu achava que não ia conseguir sair dali, que iria morrer. Tem dias que consigo ser alegre, fico cantando. Quero um futuro sem ter que tomar tantos remédios, poder voltar a andar normal, isso seria uma vida perfeita".
No momento, Brumadinho se prepara para receber visitantes de todo o estado de Minas Gerais, para prestar homenagem às vítimas após o primeiro ano da tragédia. Não será a primeira vez que isso acontece: no dia 25 de cada mês, os familiares dos mortos e desaparecidos no desastre se reúnem na entrada da cidade.
Natália de Oliveira é frequentadora assídua das homenagens. "Estamos unidos pela tragédia e dor. Em Brumadinho, nos tornamos uma família uns para os outros", ressaltou.