A análise política, para ter algum valor, precisa se ater ao que as coisas são e não ao que deveriam ser, segundo o nosso juízo ou nossos valores. Para compreendermos o que se passa, é preciso resistir à tentação de tomar partido.
Os Estados Unidos e a Inglaterra são nações dominantes no Ocidente, não apenas pelo tamanho de suas economias, mas, principalmente, pelo seu alto grau de civilização. O mundo globalizado é a imagem dos valores e das formas culturais que emanam dessas sociedades, cujos centros ; Nova York, Los Angeles e Londres ; são o ponto mais alto da sofisticação e da modernidade. No entanto, essas sociedades, em eleições livres e democráticas, escolheram governantes cujos modos, palavras e atos refletem sistematicamente vulgaridade, obscurantismo e desprezo pela cultura e pela inteligência. O mais dramático é que não foram escolhidos por engano, mas por serem exatamente o que são. Por quê?
No Brasil, aconteceu alguma coisa parecida. Em nosso caso, a aversão ao Partido dos Trabalhadores, sua complacência institucional com o saque ao Estado e seus indesculpáveis erros de política econômica, certamente predispuseram os eleitores a aceitar qualquer via alternativa. Mas dentre as alternativas possíveis, o fato de a escolha ter recaído num candidato nostálgico do mais terrível momento de nossa história política e expressamente em oposição a tudo o que o país desenvolveu em diversidade cultural e tolerância humana, precisa de uma explicação. Não é este o Brasil que conhecíamos.
Um episódio destes dias de Natal acendeu uma luz em minha mente. Tomei conhecimento de que um canal americano de "streaming" produziu e está exibindo, ou vai exibir, para celebrar as festas de fim de ano, um filme natalino em que o personagem do Cristo é homossexual e Nossa Senhora aparece fumando algo que pareceria um cigarro de maconha. Antes que surja algum mal-entendido, acho que a liberdade de expressão deve ser respeitada e que todos são livres para se manifestar. Não precisamos de censura, pois nenhuma autoridade precisa proteger a minha sensibilidade. Eu, e todos os brasileiros, sabemos fazer isso muito bem e o que nos causa repugnância evitamos por nós mesmos.
Ser ou não homossexual e fumar ou não fumar, em si mesmas, são situações absolutamente normais. O meu Cristo, por exemplo, só consigo compreendê-lo como uma síntese de toda a condição humana, contendo em si todas as formas que assume a humanidade. Mas a questão é inteiramente outra, pois o objetivo do filme não é exaltar a pluralidade humana, mas sim chocar e zombar da sensibilidade de quem ainda tem fé e respeita o sagrado, como algo além de nós e que não pode ser transgredido. E chocar, não para defender por alto preço uma ideia contra a corrente, como fazia Voltaire em seu tempo, mas para explorar nichos de mercado em busca do lucro sem riscos.
Desde os tempos imemoriais, o homem tem buscado um sentido para a sua vida e uma luz sobre o desconhecido no transcendente e no sagrado. Uma parte do homem moderno acha que já é tempo para a sua completa emancipação. Apesar dos progressos materiais evidentes, o homem continua sendo uma criatura frágil diante da sociedade e diante do cosmos. Quanto mais sabemos, mais descobrimos o tamanho do que não sabemos. Quanto mais ricas as sociedades, mais o homem se sente injustiçado e desamparado diante de um destino que é sempre maior do que ele.
Esmagado pela arrogância das elites culturais, a grande maioria das pessoas comuns sente, cada vez mais, o medo do novo e do desconhecido, temendo, como os astecas nas lindas palavras do poeta Octavio Paz, que lhe roubem a fé e também seus deuses, a última coisa que possuem.
Esse medo, para mim, está na raiz dessa reação política. As pessoas aceitam pagar o preço da vulgaridade desses líderes, porque eles lhe acenam com um limite para as transgressões que ameaçam seu chão. E, no fundo, eles têm sua razão. O fim do sagrado é também o fim de todos os limites. É a promessa de um vazio e de um abandono grandes demais para o coração dos homens simples!