Jornal Correio Braziliense

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Opinião: Nada foi por acaso

Chamar a atenção para a invisibilização da luta histórica assumida pelo Movimento Negro, a qual resultou na adoção de políticas públicas abertamente ameaçadas na atualidade, é o propósito principal deste artigo. Porém, consideramos importante ressaltar que há um caminho retrospectivo de ações do ativismo negro, tais como criação de entidades, realização de encontros regionais e nacionais, organização de marchas, formulação de propostas ao Estado brasileiro para enfrentamento ao racismo.

Esse histórico de contínua mobilização e organização da população negra é legado de muitas gerações de ativistas, intelectuais, artistas, diversos segmentos que, no momento, enfrentam uma conjuntura em que essa herança é colocada em questão de forma concreta e simbólica.

O Estado brasileiro, por meio do presidente da República, condena e criminaliza a população negra, legitimando o contínuo genocídio da juventude, o feminicídio, que tem como alvo preferencial as mulheres negras, a exclusão de estudantes negros dos bancos escolares... Age desse modo com o absurdo consentimento de parcelas expressivas da sociedade, hoje declaradamente conservadora.

Os fatos do cotidiano sustentam a concretude das denúncias históricas apresentadas pelo Movimento Negro. As demandas por acesso à educação, segurança, saúde, liberdade de professar suas crenças, ingresso e permanência no mercado de trabalho não são reivindicações recentes. Elas integram a agenda social dessa população, em defesa da cidadania plena, algo que ainda se almeja.

Recentemente a extinção do Movimento Negro sugerida de forma desrespeitosa pelo que fora nomeado a presidir o órgão de valorização da cultura afro-brasileira, Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cidadania, causou estarrecimento e indignação no campo democrático e nas organizações que centralizam a luta contra o racismo. A negação e a tentativa do apagamento da dimensão simbólica desse ator social, que é o Movimento Negro, na sociedade brasileira parece ser meta dos que se opõem a tal ativismo, procurando empurrá-lo sempre para a marginalidade.

O ideário da inexistência do racismo no país contraria as estatísticas das pesquisas de instituições respeitáveis como IBGE, Dieese, Ipea, traduzidas nos diversos relatórios acerca da desigualdade social, da violência e outros estudos, os quais desconstroem o mito da democracia racial. Contudo, no vão esforço de arrefecer as denúncias de racismo institucional e fragilizar as lutas por ações afirmativas protagonizadas pela militância, os segmentos conservadores continuam a cerrar fileiras.

Mas o que vem a ser Movimento Negro, afinal? Segundo o filósofo e ativista Marcos Cardoso: ;Os negros e as negras descendentes de africanos desenvolveram variadas formas de lutas e estratégias coletivas de sobrevivência, de resistência, de combate ao racismo, à discriminação racial, ao preconceito, às desigualdades sociais e do enfrentamento cotidiano à violência física e simbólica, contra o seu corpo e a sua cultura; [O movimento Negro em Belo Horizonte: 1978-1998, 2002]. Tal argumento explicita uma compreensão partilhada por várias organizações negras espraiadas pelo país e se constitui eixo orientador de lutas antirracismo no Brasil.

A professora emérita da UFMG e ativista Nilma Gomes, na obra O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação, reflete acerca do referido fenômeno. A autora discorre sobre o papel do Movimento Negro brasileiro como ;educador, produtor de saberes emancipatórios e sistematizador de conhecimentos sobre a questão racial no Brasil. Segundo ela, ;saberes transformados em reivindicações, das quais várias se tornaram políticas de Estado nas primeiras décadas do século 21.

Enfim, este texto busca argumentar sobre a necessidade de reconhecimento constante do protagonismo exercido pelo Movimento Negro, que compreende também as organizações de mulheres negras, o ativismo afro-religioso, entre outros atores no cenário nacional. Esse movimento é o responsável, apesar das objeções, por importantes processos sociais que fomentaram e fomentam lutas populares neste país.

Para concluir, vale ressaltar um fragmento das ideias do professor titular da USP, Kabengele Munanga [Negritude: usos e sentidos, 2009]. Ao definir negritude, ele afirma que é a ;Tomada de consciência de uma comunidade de condição histórica de todos aqueles que foram vítimas da inferiorização e negação da humanidade pelo mundo ocidental, a negritude deve ser vista também como afirmação e construção de uma solidariedade entre as vítimas. Consequentemente, tal afirmação não pode permanecer na condição de objeto e de aceitação passiva. Pelo contrário, deixou de ser presa do ressentimento e desembocou em revolta, transformando a solidariedade e a fraternidade em armas de combate (...);. Essa é a essência do Movimento Negro.