Fred (nome fictício) voltava para casa no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio, no início de 2018, quando se viu em meio a uma perseguição da polícia a suspeitos. Não conseguiu se abrigar. Um tiro de fuzil atravessou seu pulmão e o matou, assim como outros dois moradores. "O corpo foi retirado do local sem perícia", afirma a filha de Fred - ela prefere preservar sua identidade, como medida de segurança. "Aqui, a gente cresce tendo de saber como agir em tiroteio. Acontece sempre. No caso do meu pai foi fatal. Como pode ser normal as pessoas morrerem?"
Não foi só a perda familiar. Moradora da comunidade onde, no fim de semana passado, a menina Ágatha Félix, de 8 anos, morreu após ser baleada durante ação policial, a jovem relata que, desde a morte do pai, passou a ter medo de sair de casa.
Antes da tragédia, porém, sua vida já era marcada pela violência. Ela perdeu as contas, por exemplo, das vezes em que, antes de ir para a rua, colocou na bolsa uma muda de roupa. Era precaução para o caso de não poder voltar por causa de confrontos, que se repetiam.
O relato da filha de Fred é comum no cotidiano dos 17.500 jovens - pessoas com idade de 15 a 29 anos - que vivem nas 13 favelas do Complexo do Alemão.
O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) ouviu 603 deles nos meses de março e abril para conhecer sua percepção sobre a violência praticada pelo Estado na comunidade. Segundo o levantamento, 69% afirmam que já sofreram ou conhecem alguém que sofreu algum tipo de violência por parte de agentes do Estado.
Para a pesquisadora Bianca Arruda, do Ibase, o número é, provavelmente, ainda maior. "Essa é uma pergunta muito sensível. Estive no campo acompanhando a pesquisa e por vezes os jovens ficavam desconfiados e preferiram não responder", diz.
A reação é considerada por ela mais um indício de violação do direito à vida segura no Alemão. E, embora o questionário da pesquisa fale genericamente em "agente de Estado", na prática quase sempre os jovens, em suas repostas, se referem a policiais.
Violência
No topo da lista de abusos citados pelos jovens, estão a violência verbal (18%) e a violência física (15%). São episódios que incluem agressões, maus-tratos e "esculachos" (humilhações). Entre os entrevistados, 12% citaram disparos a esmo e a realização de operações em horário escolar ou que põem em risco a segurança dos moradores (violência ambiental), além da violência psicológica, como ameaças.
Outros 10% já foram ou conhecem alguém que foi alvo de flagrantes forjados ou acusações injustas, como a de ser criminoso, sem nenhuma prova. É o que o Ibase chama de violência moral.
A pesquisa mostra ainda que 9% dos jovens moradores do Alemão relataram histórias de assassinatos e chacinas praticados por policiais ou outros agentes públicos contra um parente ou conhecido. Casos de violência sexual como estupro ou assédio fazem parte da realidade de 5% deles.
"Considero resultados muito altos. São números que deveriam surpreender, mas, em se tratando de favelas, acabam apenas corroborando algo que já era esperado", diz Bianca.
Em nota, a Polícia Militar do Rio afirma que não compactua com nenhum possível desvio de conduta de qualquer um de seus agentes.
A conclusão do estudo é que para, os jovens do Alemão, o direito à vida, assegurado pela Constituição Federal de 88, está sendo violado por quem deveria assegurá-lo: o Estado. Para a pesquisadora, esse direito vai além da dimensão biológica, abrangendo também o direito a uma vida digna. O conceito pressupõe direitos básicos como os vinculados ao bem-estar psíquico e social.
Batizada de Juventude em Movimento, a pesquisa foi realizada em parceria com o Instituto Raízes em Movimento, uma organização não governamental do Complexo do Alemão. Os questionários foram aplicados por 20 jovens da comunidade, sob supervisão de uma equipe técnica. O trabalho foi financiado pela organização canadense International Development Research Centre (IDRC) e incluiu outros dados relativos a aspectos como intolerância religiosa, educação e saúde, ainda em análise.
Após receber investimentos governamentais, como o teleférico, que teve recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e atraiu turistas para a favela, o Alemão hoje vive em estado de abandono, reclamam moradores. Há ainda a percepção é de que há um aumento da violência por agentes estatais nesse momento, com a repetição de operações policiais e repetidos tiroteios.
"A morte da Ágatha é reflexo de uma política de segurança descompromissada com a vida das pessoas que residem nessas áreas", diz a pesquisadora do Ibase.
Os resultados do levantamento vão embasar debates sobre a situação dos direitos no Alemão com os moradores. A aposta é criar uma rede com a participação de organizações sociais e um fórum de reivindicação com base em reflexões e demandas da população.
Contraponto
Em nota, a Polícia Militar do Rio afirma que não compactua com nenhum possível desvio de conduta de qualquer um de seus agentes.
"A Corregedoria monitora, atua e pune todos os envolvidos em tais práticas quando identificados e comprovados os fatos", diz a PM no texto.
A corporação destaca ainda ter canais de denúncia em que o anonimato é garantido.