O estudo abrange os meses de agosto de 2018 a maio deste ano e contabiliza 931 relatos de agressão. Parte dos relatos foi denunciada durante audiências de custódia.
O estudo será apresentado nesta sexta-feira (2/8) no Seminário pelo Fim da Tortura, que ocorre na sede do órgão, no centro do Rio de Janeiro.
Policiais militares foram apontados como os agressores em 82% dos casos denunciados, com 687 denúncias. Policiais civis seriam os agressores em 60; guardas municipais e agentes penitenciários, em 15; e militares do Exército, em 14.
Segundo os denunciantes, 760 agressões ocorreram no local da prisão em flagrante, enquanto 36 teriam sido cometidas já nas delegacias. A unidade prisional e a viatura policial também figuram entre os locais com mais denúncias, com 19 e 13 casos, respectivamente.
A defensora pública Mariana Castro afirmou que os números apontam para a necessidade de mudanças na formação dos policiais militares e do combate à lógica de guerra contra o crime. "Isso inclui um discurso de relativização dos direitos do inimigo."
Lesões aparentes
Os dados registram que as denúncias de agressão física somam 869 casos, incluindo 399 de socos, 432 de chutes, 312 de tapas no rosto e 70 de utilização de sacos plásticos para sufocamento. Há ainda relatos de pauladas, pisões, choques, cortes e queimaduras.
Em 57% dos casos, as agressões deixaram lesões aparentes que podiam ser identificadas no momento da audiência de custódia.
Há ainda 311 casos que incluem denúncias de violência psicológica, entre os quais foram registrados relatos de ameaças de morte (130) e arma apontada para a cabeça (72).
A defensora pública alerta que existe na sociedade e nas instituições uma naturalização estrutural de agressões como parte das prisões.
"Isso perpassa inclusive o poder judiciário e o próprio ministério público, que muitas vezes não tratam esses casos com um olhar de enxergar a gravidade que eles traduzem", disse a defensora."Essas situações são tratadas como comuns e até talvez esperadas em uma situação de prisão e de combate ao crime. Existe na sociedade em geral uma ideia de que isso faz parte."
Mariana Castro conta que, mesmo quando há exames de corpo de delito comprovando as agressões, muitas vezes os juízes não entendem que a tortura macularia a legalidade do flagrante, o que, segundo ela, está previsto pela legislação e tratados internacionais.
"Seria importante que o judiciário e o ministério público enviassem a mensagem de que, se o individuo for torturado na prisão em flagrante, aquele flagrante é nulo e vai ser perdido", ressaaltou. Ela informou que os casos relatados são encaminhados ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
Perfil dos agredidos
A Defensoria Pública também conseguiu identificar no levantamento que as agressões são mais frequentes contra pretos e pardos, seguindo a categorias de raça do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dois grupos somam 82,6% dos casos, enquanto os brancos sofreram 17% das agressões denunciadas.
"Existe, sim, um viés racial. É como se, de fato, em uma visão racista, que é muito arraigada na sociedade, estrutural e muitas vezes inconsciente, o negro é visto como um sujeito de menos direitos."
[SAIBAMAIS]Entre cada quatro possíveis vítimas de agressão, três não tinham o ensino fundamental completo. Ao todo, foram 590 pessoas com esse nível de escolaridade entre os agredidos, enquanto, na outra ponta, em três casos pessoas de nível superior completo relataram ter sofrido violência. Também foi levantado que 97% das vítimas dos supostos casos de agressão são homens, enquanto 2,8% são mulheres.
O respaldo de parcelas da sociedade a esse tipo de violência, na visão da defensora, passa por uma falsa ideia de que é possível relativizar os direitos de um grupo de cidadãos sem que os direitos de todos sejam atingidos.
"Ainda que a pessoa seja acusada de um crime, ela não pode ser despojada de seus direitos. ela não perde seu status de indivíduo titular de direitos", lembra Mariana Castro."As pessoas muitas vezes esquecem que quando você flexibiliza os direitos de um, para que os seus direitos sejam flexibilizados, é um passo. As coisas vão em escalada. As pessoas sempre acham que os direitos delas não vão ser flexibilizados, o que não é verdade".
Procurada pela Agência Brasil, a Secretaria de Estado de Polícia Militar do Rio de Janeiro afirmou que não compactua com qualquer desvio de conduta ou excessos cometidos por policiais. "A Corregedoria da PM apura com extremo rigor todas as denúncias que caminhem nesse sentido, assim como se mantém integralmente à disposição para colaborar com todos os procedimentos apuratórios conduzidos pelas esferas judiciais", disse a nota, que também informa os contatos da Corregedoria da Polícia Militar que estão à disposição dos cidadãos: o Whatsapp (21) 97598-4593, o telefone (21) 2725-9098 ou e-mail denuncia@cintpm.rj.gov.br.
A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária disse que apura todas as denúncias recebidas. "Caso sejam comprovadas as informações, um processo de sindicância é iniciado pela Corregedoria. Ressaltamos que a Seap repudia, com veemência, qualquer ato de violência realizado dentro das unidades prisionais.".
Os outros órgãos citados na matéria foram procurados pela reportagem, mas ainda não se posicionaram.